O Infiltrado

Infiltrado

[por Sônia Moura, em 07/05/2008]

Aproveitador que só, de jeito nenhum ele iria perder a oportunidade de levar alguma vantagem, naquele período de ditadura.

Gostava da direita? Acreditava que a esquerda estava certa? Tanto fazia, ele queria mesmo é levar vantagem, quem desse mais, levaria o seu passe.

Estudou os dois lados e logo viu quem estava vencendo, naquele momento.

Ofereceu-se, insinuou-se, delatou e, finalmente, foi aceito como espião, estaria infiltrado entre os “rebeldes” e deveria entregar nomes, atos e lugares às autoridades competentes.

Seu codinome? Azul – rei, por isto deveria trazer tatuado no corpo uma ave com um dos olhos igual a uma conta, pintada com a mesma cor do codinome. Assim foi feito.

Delatou, inventou, prejudicou.

Um dia, mudaram o comando do Leste e para lá foi indicado um desafeto seu, cuja mulher entregou-se ao agora infiltrado, deixando o militar numa tristeza infinda. O desafeto traído era, agora, o comandante daquela divisão.

O comandante fingiu não saber que ele era o infiltrado Azul-rei. Tratou-o como subversivo, deixou-o a pão e água, submeteu-o a interrogatórios crudelíssimos, debaixo de muita pancada e tortura.

Ao final, pediu desculpas, mas Azul-rei já estava completamente desorientado, vivia olhando para o braço onde estava tatuada a sua marca de infiltrado, um corvo com olhos diferenciados: o da esquerda parecia uma conta cinzenta, o da direita era a mais perfeita conta azul- rei.

Nada lucrou, só levou da vida ressentimentos, e, pouco tempo depois, morreu.

Queria ser rei de qualquer jeito, foi apenas vassalo.

“Ser infeliz”, este era o seu código!

(Do livro CONTOS E CONTAS, de SÔNIA MOURA)

RETROCESSO

MULHER

Como de costume, saía para sua caminhada matinal à beira mar. Ainda se fazia silêncio na cidade que, daqui a poucos minutos, iria deixar sair de suas entranhas barulhos de todos os tipos. O vai-e-vem já estava para começar, pernas apressadas, cabeças pensativas, olhos cheios de sono. Era a vida agitada a ocupar o seu lugar, enquanto a tranqüilidade iria descansar. Via esta cena praticamente todos os dias.
Embora àquela hora fosse fácil atravessar a Nossa Senhora de Copacabana, porque quase não havia carro transitando, ela ficou parada diante do sinal de trânsito, observando um casal do outro lado da rua.
Com um sorriso a la Monalisa, observava a difícil despedida do casal enamorado Eles estavam tão grudadinhos e davam um, dois, três, quatro e tantos beijos, despediam-se e voltavam a se abraçar.
Pensou em sua mocidade, ela também já vivera momentos assim.
Sua alma alegrou-se, por meio do retrocesso da memória e o sorriso alargou-se. Atravessou a rua; enquanto seu olhar atravessava a cena de cada beijo e sua mente fluía pelo túnel do tempo. Um tempo em que a felicidade era tão presente que ela sequer iria imaginar que, somente no futuro, iria dar tanto valor à felicidade do passado.
Já no outro lado da calçada, pode ver melhor a face da juventude enamorada, passou bem pertinho como se pudesse reviver aquele momento único.
Precisava seguir em frente, assim como o tempo. Olhou mais uma vez para trás e os pombinhos continuavam a arrulhar e a se beijar.
Viu quando outra mulher, mais ou menos com a sua idade, olhava o casal enamorado, mostrando também um sorriso de saudade estampado nos lábios.
Baixinho, disse adeus à cena, precisava continuar…

A FLOR DA MORTE

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Morava à beira mar, numa cidade pequenina, aconchegante, onde a vida passava devagar. Tudo era muito calmo, somente o sino da igreja quebrava o quase silêncio daquele lugar.

Um dia, no pequeno lugarejo, surge um construtor ávido por lucros e resolve promover a cidade: novas construções, novos projetos, tudo, tudo novo. Foi neste momento que o  destino resolveu trabalhar e tudo mudar. Para melhor? Para pior? Difícil dizer.

Para alguns, o lucro rápido e a ascensão econômica, política e social era a certeza de que a mudança foi benéfica, ao menos para suas contas bancárias. Outros, menos afortunados, queixavam-se que a paz se afastou da cidade, quando muitos estranhos lá aportaram.

Mas, para Clara, pouco importava o que estava acontecendo, pois a moça tinha o seu jardim secreto, onde somente ela poderia chegar. Clara julgava-se protegida contra todas as mudanças.

Mas, haverá esconderijo para Eros ou para Tânatos?

Ao conhecer Francisco, homem vivido e sedutor, Clara deixou-se levar por sua lábia e deixou-o penetrar no seu jardim secreto. Ele colheu a rosa que queria, presenteou-a com uma conta cinza, cor da desesperança e do desespero e, depois, partiu sem dizer adeus.

Assim é que Eros deu lugar a Tânatos no jardim secreto de Clara, tomando conta de sua vida para sempre e, a partir daquele abandono sem nenhuma explicação, um coração estraçalhado foi plantado no jardim, agora já não mais secreto, e naquele lugar, uma flor, em forma de coração e  com as pétalas partidas, nasce todo os anos, sempre no dia 21 de agosto.

[Do livro CONTOS e CONTAS, de SÔNIA MOURA]

ESSAS MAL TRAÇADAS LINHAS…

carta de amor
Com o papel amarelecido pelo tempo em suas mãos enrugadas, também pelo tempo, Marieta relia, mais uma vez, aquelas mal traçadas linhas.

Nestes momentos, Marieta voltava a ser a jovem que viajava para tempos que lá se vão, quando computador, e.mail e celulares sequer passavam por nossas mais loucas fantasias, sonhos, delírios, desejos e outros quetais, pensou. Um tempo no qual muitas cartas de amor, de qualquer forma de amor, começavam assim: “Tomo da pena e do papel para escrever essas mal traçadas linhas…”, que, aliás, não eram tão mal traçadas assim, concluiu Marieta.

Um sorriso pálido emoldurou-lhe a face e iluminou-lhe o olhar, trazendo do passado a jovem que esperava no portão a chegada do senhor Marcolino, o carteiro do vilarejo, onde morava a ilustre dama. Ilustre Dama, era assim que a ela se dirigia o cavalheiro, dono de seu coração.

A memória afetiva da ilustre dama trouxe do fundo do baú da saudade a imagem do jovem donairoso, com seu majestoso bigode e suas roupas elegantes. Marieta, agora, via-o curvar-se, beijando-lhe a mão, num gesto galanteador, bastante envolvente.

– – Meu Deus, tanto tempo se passou. Por onde andará Ricardo? Será que ainda vive? Ela mesma respondeu:
– – Claro que sim, Ricardo vive, ao menos para mim, nas imagens emolduradas por essas mal traçadas linhas…

Misturando-se ao sorriso da jovem de outrora que voltava no tempo, por meio daquelas mal traçadas linhas, uma lágrima de saudade, imitando uma conta multicor, atravessou a barreira dos óculos e veio banhar a mão outrora beijada, respingando no amor em forma daquelas mal traçadas linhas...

(Do livro CONTOS E CONTAS de SÔNIA MOURA)

A Geometria da Luz

LUZ
A cortina, embalada pelo vento, ensaia uns passos de balé, e, no seu vai-e-vem , a geometria da luz se apresenta a mim. Na janela semi-aberta, a cortina, qual os sete véus da bailarina, me seduz , mas se entrega ao sabor do vento .

Surge a primeira forma, um quadrado feito de luz e sombra, que rapidamente se duplica , quando um traço de sombra o divide.
O movimento se espalha pela cena, o vento embala a cortina que dança, ou melhor, apenas uma parte dela se move, deixando a luz penetrar pela “janela lateral do quarto de dormir”.

Com este jogo de esconde e mostra, o vento quer – me oferecer múltiplas formas, através das variações entrecruzadas de luz e sombra.

O véu – cortina se abre e fecha num exercício frenético .

O quadro de luz retorna à cena, ali permanece por alguns instantes, para ceder lugar ao triângulo luzente que se transforma em leque, em losango, num pequeno triângulo e, antes de terminar este ato, toda luz se condensa em uma pequena esfera que se rompe em dois minúsculos pontos de luz a se exibir no meio de uma sombra imensa, como se fossem duas contas douradas.

Abruptamente a cortina se fecha. Em cena, fica somente a sombra que enche o palco, como se quisesse dizer: – Sou a parceira da luz, faço parte do jogo, faço parte da arte.
Meus olhos se deliciam com os movimentos dos que dirigem o show. O que será que mais me atrai: a luz que está no centro das imagens formadas ou a sombra que lhes dá o contorno?
E o vento resolve, novamente, balançar a cortina.

Começa outro ato.

Adentra o palco um losango cheio de luz ou seria um balão aceso num céu-chão? Não cabe aqui cantar: “Cai, cai, balão!”. A equipe que dirige o show grita sussurrando: Vai, vai, balão! , esta é a sua deixa, sai de cena, seu tempo é curto.

Retrucam os atores: – O tempo é infinito!
Estamos na reta final, o vento está cansado, sopra leve: o quadrado retorna , vai-se desmanchando, vai-se transformando, vai-se refazendo lentamente: triângulo, losango, quadrado….
Cai o pano.

Como se fosse àgua escorrendo pela montanha de madeira, a sombra agora está absoluta no palco, somente uma conta dourada desenhada por uma luz pálida ainda insiste em atravessar a barreira , mas nem é notada.

O espetáculo é finito.

(Do livro CONTOS E CONTAS de SÔNIA MOURA)

A LUZ DOS TEUS OLHOS

Luz dos olhos

Era noite, era o momento da treva, porém no meio dela surgiu uma luz. O salão fervilhando, a música, a dança e … a luz.
Artificialmente bela, iluminava aquele palco, piscava, tremulava; chamam-na luz negra. Projetava-se sobre nós, destacando-nos por inteiro naquele cenário, tudo mais era escurtidão. Seria isto verdade ou eram os nossos sonhos que se alinhavavam e dirigiam o foco de luz para este ponto que eram dois?
Os corpos pareciam movimentar-se mais que de fato o faziam. E a luz começou a brincar com o brilho do desejo.
Luz Negra – relação semanticamente incoerente.
Foi sob o reflexo desta luz, emergindo no meio da névoa dos cigarros, que o vestido branco adquiriu um brilho cor de prata e os sorrisos, à luz ambiente, também ficaram prateados.
Mudamos o cenário. À nossa frente , um mar imenso se oferecia enquanto bebia mansamente a luz do luar, suas ondas se encrespavam, balançando a cabeleira prateada, era noite de lua cheia.
Num caminhar lento, quase tristonho, a luz prateada, roubada do astro rei, beijava o contorno dos corpos, das árvores, das montanhas e ia-se escondendo, deixando o palco para o sol que surgia dorminhoco, a bocejar, a lançar raios de luz, rompendo a cortina de uma nova manhã.
Continuávamos ali, sentados na areia que já apresentava uma nova face, parecia preparar-se para um baile, aceitava a nova maquilagem , seus grãos, refletindo os raios de luz mais intensos, brilhavam como se fossem pequenas estrelas, nas quais podíamos tocar; o mar vestia um novo manto, cujos tons iriam-se modificar ao longo do dia, de acordo com a força e a posição daquela fonte de luz; não estaríamos ali para ver estas mudanças.
O sol ia despejando luz e calor sobre tudo e todos que estivessem à luz do seu olhar, e, passo a passo, o olhar, pleno de luz, veria certamente contornos nítidos, transformados, pouco visíveis; mas não estaríamos mais ali para ver estas mudanças.
Era hora de partir. Outras noites, outros dias, outros sóis, outras luas se passaram e passarão no meio de luzes e de sombras; o espetáculo é infinito.
Como contas azuis, dois minúsculos pontos de luz brilham na cor da minha saudade e fazem par com os versos da canção: “Ai, amor, a luz dos seus olhos”.
À luz da razão, o tempo é finito.

(Do livro  CONTOS E CONTAS, de SÔNIA MOURA)

A HISTÓRIA DE LÍTTERA

livro das bruxas

Líttera mora, há muito tempo, em vários lugares. É muito poderosa, por exemplo, é capaz de ser voz, de ser letra, de ser mito. Líttera é sábia.

Ela é muito antiga (ou será velha?), e, embora possa usar a mesma roupagem, está sempre se renovando, por isso, as crianças nunca se assustam com Líttera, pois com ela compartilham e brincam.

Líttera é amiga e conselheira.

Podem até tentar aprisionar Líttera, mas ela não se deixa prender, uma vez que nasceu para ajudar a todos a aprender. Ela dora a liberdade, gosta de um palco e de fazer travessuras.

Quando acorda, seus cabelos estão desgrenhados, depois, aos poucos, ela os arruma. Ela não se preocupa muito com esta coisa de moda, mas umas pessoas insistem em colocá-la “dentro da moda”, pô-la em arreios. Não conseguem.

Líttera gosta de sorrir, conhece as malícias da palavra, sabe enfeitiçar, gosta do luar, do sonho, da fantasia e brinca com a realidade. Adora contar casos, suas palavras são mágicas. Por isso ela também é chamada de maga.

Líttera busca e nos faz buscá-la, às vezes, brinca de confundir, para depois explicar.

Nunca sai de nossa vida. Ora aparece em forma da palavra falada, ora em forma de palavra escrita. Líttera está em todas as partes o tempo todo.

Aliás, o que seria de nós sem ela?

Líttera é a bruxa das palavras.

A TIARA DE PRATA

noiva

Acima, uma foto da moça e abaixo uma placa em que se lia: “Esta tiara, confeccionada em ouro, prata e contas brilhantes, cingiu a cabeça de Sua Alteza Real – a princesa Leonora Scranvarid, presente de seu amado marido”.

Naquela noite, o príncipe Luciano Maldinovic roçou-lhe os lábios, doces como frutos da estação, beijou-lhe os olhos cor de mel, que brilhavam intensamente como um sol, acariciou-lhe os seios redondos e firmes. Fizeram amor. Olhou- a mais uma vez, colocou a tiara sobre seus cabelos e ambos sorveram o delicioso vinho que Ramiro Ostrega Olmys, eterno apaixonado, presenteara os noivos.

 Na manhã seguinte, no quarto real, os dois, embora mortos, exalavam vida por todo o aposento.

(Esta informação não estava na placa).

(Do livro CONTOS E CONTAS, de SÔNIA MOURA)

Bolhas da Saudade

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A colher de pau era mexida para lá e para cá e ia misturando o fubá, o leite e o açúcar, no preparo do alimento, enquanto isso, as lembranças se remexiam dentro do cérebro e, na mesma proporção em que os ingredientes iam-se misturando, a vida era repassada dentro de outra panela.

Precisava acrescentar erva doce e mais um pouco de leite à mistura, então, bateu a colher de pau na borda da panela, e, nesse momento, bateu uma saudade imensa dos tempos de outrora, quando, no colégio interno, pela manhã, era servido um gostoso mingau, que era mesmo divino.

Lembrou-se especialmente da vovó Donana, uma senhora baixinha, muito amorosa e que gostava dela, especialmente dela, hoje sabe que era a protegida da vovó. Sempre que possível ficava a seu lado ajudando-a a servir os pratos e vovó tinha uma mania, a cada prato servido, batia com a colher ou a concha na borda da imensa panela na qual era feita comida para as cinqüenta meninas do orfanato.

Naquela época a inocência era aliada da alegria e uma das maiores diversões para aquelas crianças que também quase nada tinham, era soprar a “casquinha do mingau” que se formava por cima do creme. Soprava-se e surgiam bolhas de todos os tamanhos. Quando não se formavam os buracos naturalmente na superfície, fazia-se um furinho sobre a crosta, para que o ar penetrasse e aí começava a brincadeira.

Em suas lembranças, aquela mesa comprida, cheia de meninas carentes, mas que disso não sabiam, não era a imagem da tristeza, pois agora, adulta, sabe que criança é feliz com muito pouco e fazer bolhas na crosta do mingau de fubá, que mais pareciam contas amarelas estufadas sobre o mingau, era pura alegria e diversão.

Sentou-se, abraçou-se com suas lembranças, espantou a solidão e, de novo, se viu naquela mesa a fazer bolhas de mingau, alegremente.

Um largo sorriso invadiu seu coração.

(Do livro CONTOS E CONTAS de Sônia Moura)

A escadaria

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Havia muito pouco tempo que ela saíra do orfanato, no qual estivera por 13 anos. Lá viveu seus primeiros anos e naquela casa seus caminhos começaram a ser traçados. Aprendeu a amar as artes, as plantas, as pessoas e a vida. No pouco tempo fora do ninho, a maior vontade era para lá voltar. Como o mundo aqui fora era diferente, difícil. Sentia-se muito, mas muito só, mas continuava a crer na vida.

Fora morar com os tios no Leblon. Uma noite a levaram a uma festa no Humaitá. Até hoje ela se lembra do momento em que subiu a linda escadaria daquele prédio majestoso e, num dos degraus viu uma conta azul reluzente, apanhou-o e a tem até hoje. Nunca mais se lembrou da festa, das danças, lembra-se vagamente que tocaram uma música dos Beatles, mas da escadaria lembra-se de cada detalhe.

Um dia descobriu, aquela escadaria lembrava a primeira vez que subira a escadaria do orfanato, com muitas meninas cantando só para ela, foi a primeira vez na vida que se sentiu amada.

(Do livro Contos e Contas de Sônia Moura)