A BELA E A FERA – LITERATURA E CINEMA

Bela e a fera

A BELA E A FERA NO CINEMA [Por Sônia Moura]

Originalmente, na Inglaterra, o cinema se chamava bioscope, porque representava, em termos visuais, os movimentos das formas de vida. Simbolicamente, o cinema alargou esta definição para “os movimentos das formas de viver”, ao atualizar “realidades”, provocar fantasias, despertar mentes, repetir ritos, assim o cinema nos traz o espetáculo “salvador”.

A rede narrativa cinematográfica dá solidez aos fatos narrados por seus mecanismos de sugestão, que se apóiam nos símbolos, nas associações de imagens e, assim, reprisa – se o mundo, (re) constrói – se um universo verossímil, como se verdadeiro fosse, passa a ter estatuto de poder e qualquer forma de poder espraia ideologias, fá-las representações do senso comum, dá voz, deforma, reforma e forma “consciências”, podendo provocar metamorfoses, uma vez que o processo ideológico recorta o real de acordo com o seu modelo.

O filme de Walt Disney (A Bela e a Fera) é uma metamorfose mítica do conto A Bela e a Fera; o título da obra (também codinomes dos protagonistas) são metamorfoses de seus nomes ocultos, de seus perfis psicológicos; perfis comportamentais: bom/mau; bem/mal; feio/belo. Nesta obra cinematográfica, as metamorfoses fantásticas contracenam com as metamorfoses ideológicas, e o espetáculo, como ideologia, nos diz que tudo está ideologicamente em ordem: o social, o familiar, o ideativo, o cultural. Tudo está em ordem.

Desde o século XIX, várias teorias definem (ou tentam definir) o que é família. No lastro da história, vários são os papéis primordiais a ela atribuídos, de acordo com as necessidades ou prioridades de cada momento. Mesmo hoje, que o modelo de família é o modelo nuclear, um papel que não perde o seu lugar no âmbito familiar é o de auto – socializador, não só educa, mas também, transmite todos os condicionamentos para a expressão ou inibição de emoção.

Em Esparta, na Grécia antiga, os meninos eram retirados da presença materna aos sete anos para serem submetidos, desde então, a treinamentos militares rigorosos. A presença materna era considerada nociva, já que ia “mimar” e consolar os filhos nos momentos difíceis, tornando-os assim muito sensíveis e despreparados demais para assumir a dura missão de morrer pela pátria.

Algum paradigma com os contos de Fadas?
Numa versão bem próxima do que se conhece como o original de A Bela e Fera, a família de Bela é constituída por ela, o pai, dois irmãos e duas irmãs, enquanto no filme Bela é filha única e vive com o pai; o príncipe – a Fera -, vive sozinho.

As desmontagens familiares: substituição/divisão -mãe/madrasta; pai ausente; incesto; viagens, desencontros e reencontros, estas “desestruturas” são apontadas por Bettelheim como sendo uma espécie de truque da narrativa maravilhosa, para que a criança possa obter “.. o melhor dos dois mundos, que é o que necessita para se transformar num adulto seguro. Em fantasia, a menina pode vencer a ( mãe) madrasta … o menino pode matar o monstro..”.(Bettelheim p. 145) e, assim, as crianças podem manter os pais bem vivos e continuarem juntos com os pais “reais”.

Na obra: Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, os seres humanos eram criados em laboratórios, não existia família; também, em algumas publicações de A Bela e a Fera e no filme de Walt Disney, acontece a dissolução da família de Bela. Seria apenas o retrato desta nova família contemporânea nuclear ou seria esta mais uma estratégia ideológica da figura feminina em destaque? E o príncipe, por que está sozinho?

A Bela e a Fera, adptado pelo o cinema pelo estúdios Disney, é uma alegoria da passagem iniciática, na qual, após aceitar e realizar as provas, o herói representa a alma perdida no mundo a lutar contra os poderes inferiores de sua própria natureza e contra os enigmas que a vida lhe propõe, até encontrar os meios para a sua própria redenção e realização dos desejos.

Uma vez que pela transcendência mítica, a polissemia do fantástico reúne, materializa e traduz todo um mundo de desejos, o conto A Bela e a Fera é classificado em estudos literários ou psicanalíticos, dentro do ciclo arcaico ou ciclo da iniciação e, também, do ciclo da morte -ressurreição ou dentro do ciclo do noivo-animal.

Nesta forma de narrativa, no mesmo espaço mágico, no mesmo plano temporal (contemporaneidade) e cinematográfico aparecem a Bela e a Fera, ampliando a percepção espectador na direção ideológica de unidade, de direitos iguais, do “somos todos iguais”, criando uma forma de metamorfose transcendente que corresponde às substâncias unificadas da criação. Porém, no final, envolvida pelo véu do amor , acontece a viagem de volta à ideologia primordial, e Bela se rende ao amor romântico e irá se casar com o príncipe, não com a Fera.

Portanto, não devemos nos esquecer de que dos Contos de Fadas, seja na literatura ou no cinema, emergem símbolos, mitos, arquétipos que ordenam a cultura e dão sentido a grande aventura humana, é por estes caminhos que as personagens circulam e suas estradas se cruzam ou se afastam.

[UFF – 2001 – TRABALHO APRESENTADO POR SÔNIA MOURA]

Abela e a fera

LIVROS E ADIVINHAÇÕES

Livros e Advinhações

livros

BIBLIOMANCIA –  Etimologia:   biblio (livro) + mancia (adivinhação).
Bibliomancia é a prática que procura por respostas a questões pessoais, assim como é usada para tentar compreender o significado da vida e da realidade, lendo passagens aleatórias em qualquer livro,especialmente em livros sagrados como a Bíblia e o I Ching , além de dicionários, chamados esotéricos ou oraculares.

A bibliomancia, usada como um caminho de magia, utiliza versos de certos livros, um bom exemplo é a consulta aos Salmos bíblicos (Antigo Testamento).

Além da Bíblia e do I Ching, o Alcorão também é usado pelos muçulmanos como forma oracular.

Na Idade Média, usava-se a Eneida de Virgílio , com a mesma finalidade, já que o grande poeta romano Virgílio tinha fama de ser mago.

ALGUNS MÉTODOS

1 – O/A consulente abre o livro em qualquer página, passa o dedo por esta página, e, onde o dedo parar, o/a consulente lerá e fará a interpretação da mensagem.

2 –O livro é folheado com uma agulha e o/a consulente toma nota da primeira palavra de cada página que abrir, então, a frase, formada por essas palavras, indicará a profecia revelada.

3 – O/A consulente, deverá abrir qualquer livro (pode ser o que estiver mais próximo) na página X , e copiar a primeira frase completa, nesta frase, estará a revelação desejada.

[Fragmentos  da  palestra proferida na Universidade Cândido Mendes – 2008]

PODERES E PODEROSOS

                                                                             Pobres e ricos

PODERES E PODEROSOS(Autoria: Sônia Moura)

A tomada do poder, de qualquer poder, em qualquer época, é sempre a (re)tomada e a (re)condução do poder para outras mãos e por outras (ou as mesmas) cabeças, para e por outros interesses, por velhas – novas ideologias, transformadas em senso – comum. É assim que os poderosos inventam tradições, inventam motivações, dominam o povo e dominam um país.

As elites econômicas, políticas, religiosas e mesmo acadêmicas, qual o pêndulo de um relógio, oscilam, mas não vacilam, quanto à manutenção do poder, não o deixam escapar por nada deste mundo. Hoje, mando eu; amanhã mandará você, mas, no final, nós, os poderosos, controlamos tudo, esta é a regra.

A posse da terra, a posse do dinheiro, a posse do saber, a posse da política, a posse religiosa, a posse do social, a posse do escravo ou do alforriado – todas essas posses são sagradas, porque são representações de poder.

Os poderosos, no entanto, precisam assegurar a manutenção de todos os poderes e a manipulação de todo o poviléu, assim sendo, clientelismo e patronagem entram em cena, destituindo convicções, arrebanhando metas e “corações”.

Não adianta lutar, qualquer resistência sucumbirá, é nisto que o povo deve acreditar.

O favoritismo favorece aqueles que dominam, para que, por meio das “trocas”: toma lá, dá cá, como declarou, nestes tempos globalizantes, um parlamentar: “…é dando que se recebe…”, é o profano servindo-se do sagrado, para estabelecer convenções, convicções, ideologias e verdades mal ditas, que, por força dos interesses e do uso, se tornam bem ditas.

Então, como num grande clube, os sócios majoritários (ou mandatários) escolhem, por bolas brancas, quem fará parte da sociedade dominante, ou seja, da elite.

“Muitos serão os chamados, mas poucos serão os escolhidos” (Mateus 22.14) – assim, fala o texto sagrado, mas, para o poder, ser escolhido é ser um privilegiado, é fazer parte do leite, sendo a nata, é estar por cima não só do leite, como também da carne-seca, é não misturar mais ( só quando extrema e excepcionalmente necessário aos interesses do clube). Escolher é, antes de tudo, selecionar; e só é selecionado quem ou o que for melhor para as elites, pois irá servir a ela.

Clientelismo, patronagem e favoritismo – este trio sempre cobra um preço muito alto a se pagar, e nesta “sociedade de trocas”, o recomendável é nunca ficar do lado oposto dos mandatários, senão… “Do pó vieste, ao pó voltarás” ( Gênesis, 3.19).

É neste ponto que as elites folgam, “deitam e rolam”, pois elas sabem que a fogueira de nossas vaidades acende-se com a mínima faísca, não é preciso muita combustão, basta a cooptação, para que o novo sócio chegue à conclusão de que, mesmo sendo o patinho feio do lago, é melhor fazer parte da elite, que ser excluído.

E, enquanto as elites políticas, econômicas ou mesmo acadêmicas ficam em suas salas refrigeradas, o poviléu segue o que diz o texto sagrado: “Comerás o pão com o suor do teu rosto” (Gen 3.19) e prossegue em suas lutas por um pedaço de chão, por um pedaço de pão…

(Autoria: SÔNIA MOURA)

UMA LOUCA TEORIA SOBRE O LOUCO AMOR (ou) A ENCENAÇÃO DO AMOR PELA PALAVRA

corações apaixonados

UMA LOUCA TEORIA SOBRE O LOUCO AMOR
(ou)
A ENCENAÇÃO DO AMOR PELA PALAVRA

(Autoria: SÔNIA MOURA)

No amor, o sujeito pode-se transformar também em objeto e vice-versa, pois o amor é esta coisa barroca, alegórica e mista.

Por isto, falar de amor é estar sob as ordens do excesso ou do recesso, uma vez que o prazer e o sofrimento, assim como a presença e a lembrança, em matéria de amar andam de mãos dadas e são exaltados, enquanto o jogo entre o gozo e o sofrimento, entre o céu e a terra mostra que o amor é a (im)perfeita comunhão entre a carne e o espírito.

Desta forma, falar de amor é saber dizer bem para que o bem dizer possa ornamentar o discurso sobre este gostar profundo. Assim, é preciso que aquele que escreve sobre as coisas deste querer dê um golpe de mestre para provocar sequiosamente o desejo transmutado.

Então, falar de amor também exige esforço, exige reforço, o que leva aquele que escreve a viver entre o fato e o mito e faz-se necessário reduplicar o real e para tal só há um jeito: ressuscitar o rito, transformar dor em amor, defendendo, deste modo, o amor da dor.

Mas, se a dor persistir, a imaginação pode se mostrar aterrorizada com a medonha possibilidade de que o real venha a sobrepujar a imagem de cupido, onde reina a ambiguidade do duplo: fantasia x real, sonho x real, loucura x sanidade, amor x dor.

Na plenitude deste gostar profundo, a palavra petrifica o tempo, paralisa-o, então, quem escreve sobre o amor (e/ou quem ama) precisa mergulhar num mar de êxtases gloriosos, num lugar de total alucinação do tempo e do espaço, nos quais o real é relativizado pela (con)fusão entre o desejo e o amor, em outra tentativa de eternizar o vivido ou o sonhado, pela leveza da forma como o amor é desenhado.

Assim é que o resgate ininterrupto deste gostar coloca o sonho dentro da realidade para alargar um real, que, na verdade, ninguém sabe de fato o que é. Vencida esta etapa, a completude do sujeito com o seu objeto de desejo, chamado amor, mostra-se pela fantasia confeccionada pela palavra que consegue dissimular a dor, a saudade e o abandono, dando novos formatos ao amor.
Agora modificado, o lugar onde este sentir vai se manifestar será a palavra,  um lugar da festa, por meio da qual uma profusão de imagens bailam para não deixar o amor ser transformado em pastiche.

A partir daí, por meio da palavra, o amor se manifesta em forma de encenação e provoca a divisão do sujeito para que haja o contentamento de um ideal duplicado, transformando dois em um. Esta fusão dos sujeitos é almejada pela escrita sobre o amor, como caráter cênico, para dar mais vida à vida.

E como a vida é um grande talvez, as narrativas sobre o amor aguçam, despertam, provocam a certeza e a dúvida, garantem a pluralidade do discurso amoroso,  deixando, então, proliferarem muitas verdades, para  que possam desbancar qualquer verdade única ou centralizadora.

Da primeira à última função, as narrativas sobre o amor andam por caminhos extremos , sem margens, sem limites, tendendo ao absurdo e ao abuso, mas o que salva este discurso é a encenação da palavra.

(Autoria: SÔNIA MOURA)

Louco amor

IMAGEM E MOVIMENTO – uma introdução

IMAGEM E MOVIMENTO – uma introdução

(AUTORIA: SÔNIA MOURA)

           

O homem sempre gostou de contar suas histórias e, é através da oralidade, do desenho, da música, da dança ou da representação teatral, entre outros modos de expressão, que o percurso histórico  da humanidade se perpetua.

Este fato já se manifesta desde o tempo em que o homem habitava as cavernas e este já eternizava seus feitos e seu dia a dia  por meio de desenhos, e, entre muitos relatos icônicos, pesquisadores encontraram desenhos que simulavam movimentos.

Esses traçados  nos levam a concluir que o homem sempre desejou captar os movimentos em suas  representações  figurativas. Como  exemplo, temos em Altamira, na Espanha, um desenho com mais de 12 mil anos, mostra um bisão, que apresenta 8 patas, como se o autor tentasse decompor o movimento do animal reproduzido.

O desejo manifesto do homem de contar e registrar a sua história, através da imagem em movimento, se dá, também,  por meio das famosas Sombras Chinesas, as quais  não passavam de silhuetas projetadas numa parede ou tela,  conhecidas, na China, 5.000 anos antes de Cristo.

Outro recurso artístico empregado na arte de contar histórias, foi a criação de um projetor de imagens fixas (um dos jogos óticos precursores do cinema) denominada de  a Lanterna Mágica –  a qual funcionava mediante iluminação a vela ou a acetileno, com imagens desenhadas sobre placas de vidro. Um bom modelo tem seu registro no século XVIII, é a lanterna mágica do alemão Athanasius Kircher, que é  composta de uma caixa, uma fonte de luz e lentes que enviavam imagem para uma tela.

Chegamos ao século XIX, quando a fotografia passa a ser uma nova forma artística de registro histórico.

No século vinte, a nova forma de produção artística é o cinema, arte multiplicadora social que mais tarde, juntamente com a televisão, passa a ser considerada como “cultura de massa”.

No que se refere ao cinema e à sua história, 28 de Dezembro de 1895 é uma data especial, pois, neste dia, no Salão Grand Café, em Paris, os Irmãos Lumière fizeram uma apresentação pública dos produtos de seu invento ao qual chamaram Cinematógrafo.

No final século XX, começa a tomar conta do mundo, agora dito  globalizado, a rede de computadores com todos os seus poderosos recursos, criando e recriando artes, imagens e movimentos. A diferença pe que agora as mudanças e os movimentos  vêm a galope e/ou com a rapidez de um raio, trazendo  cores, luzes e sombras para este mundo em constante movimento.

Percebe-se, então que a criação da imagem,  aliada aos movimentos, (re)criam mundos impregnados de   polivalências significativas, o que  enriquece o valor simbólico das artes, permitindo  as diferentes leituras que delas se pode fazer.

(Autoria: Sônia Moura)

                                                                                     Imagem

ENTRE O MODERNO E O PÓS-MODERNO…

Entre o moderno e o pós-moderno…

(Autoria: SÔNIA MOURA) 

                                                                         PÓS-MODERNO
Enquanto os modernistas eram a imagem da EXALTAÇÃO, os pós – modernos são a própria EXAUSTÃO.
A arte Moderna tem total liberdade criadora, é inovadora; a arte Pós – Moderna tem isto e muito mais, por esta razão foi ”batizada” como ANTIARTE. A primeira caracteriza-se pela INTERPRETAÇÃO; a segunda, pela APRESENTAÇÃO.
Antes, o Modernismo hermético afasta inicialmente o público; agora, o Pós –Moderno pasticheiro convida o público a participar desta apatia, convida-o a sentar-se na cadeira de balanço.
O Modernismo precisa de afirmação para os seus conceitos e para a sua arte, o Pós-Moderno não quer auto – afirmar – se ou afirmar nada e ele nada – tudo quer; todos são bem – vindos, esta é a ordem da desordem.
A fantasia, o exagero, o humor sempre são boas companhias para o artista Pós – Moderno, que é um seduzido; o artista Moderno tinha pretensão de sedutor.
O poeta Moderno queria a linguagem do cotidiano, o Pós-Moderno é a linguagem coloquial, cotidiana ou, até mesmo, clássica.
Os modernistas entrincheirados bradam, levantam bandeiras, escandalizam, cutucam a consciência, se aprofundam no inconsciente; os pós-modernos não gritam, não carregam sequer pequenas flâmulas, não escandalizam nem se escandalizam.

(Autoria SÔNIA Moura)

UM DISCURSO SEDUTOR – artista, público e arte [Parte I]

UM DISCURSO SEDUTOR –  artista, público e arte [Parte I]  arte

[AUTORIA: SONIA MOURA]

A arte exibida em praça pública ou na rua é uma  forma de comunicação, que funciona como uma ponte de convencimento sobre a qual transitam sujeitos(artista/público) e um objeto(arte), onde acontece a comunhão que promove as relações entre o discurso do artista popular e seus espectadores, colocando em cena o objeto de desejo de ambos “a arte popular”, transfigurada em produto cultural que, pela fala do artista, tornar-se-á fascínio para a assistência.

É o discurso sedutor do artista-apresentador que se manifesta em meio a singularidades e peculiaridades, mesmo sendo este um discurso eivado de  contradições no campo gramatical, mas que se apresenta de forma extremamente rica no campo semântico do encantamento, funcionando como poderosa arma de persuasão.

Por serem locais de passagem: o Largo, a Praça, a Rua – espaços livres – onde arte e artista se exibem- este locais  suscitam o convite à “correria” dos tempos pós – modernos. Transeuntes, normalmente, não param sequer para olhar o seu entorno. No entanto, nossas observações e pesquisas de campo, mostraram que um número considerável de pessoas, dispostas, quase sempre em círculos ou semicírculos, tendo ao centro o artista e sua arte, param para assistir e participar destas formas de manifestações artísticas.Este público dedica parte do seu tempo livre (às vezes, todo o tempo livre) – por exemplo: a hora do almoço – ou parte do breve tempo de trânsito por estes espaços – para assistir às apresentações.

Quando o espaço público é  ocupado por  artistas e por suas diversas formas de arte mambembe, não há, geralmente, o respaldo de qualquer forma de divulgação (mídia) e sem uma política cultural que os ampare, resta, então,  ao artista > produtor > divulgador > autor >apresentador de seu produto colocar em evidência o recurso discursivo verbal, utilizando-se dele como a melhor forma de divulgação do seu produto, como ponto de atração, de convencimento, de sedução do espectador e como meio de aproximação entre arte/artista/público.

Convém ressaltar que este convencimento e esta forma de atrair o público passante é envolvida por  outras formas de linguagens complementares: gestos, sorrisos, olhares, expressões corporais e , até mesmo, imitações de vozes de animais, e todas estas formas passam a ser coadjuvantes neste/deste espetáculo.

Por outro lado, a divulgação e a “venda” deste modelo de arte acontecem simultaneamente, assim, o artista > divulgador precisa ter maior destreza na fala e convencer o seu público, para que, ao final da apresentação, a platéia não esteja esvasiada e a sua “venda” se realize favoravelmente, o que será visto pelo montante arrecadado por ele ao final de sua apresentação.

Percebe-se, então, que um dos papéis do discurso é feito pela sedução de linguagens diversificadas, que  conduzem a comunicação, assim como nos mostra o legado de Aristósteles, isto é, – a importância dos processos argumentativos – vistos como um conjunto de raciocínios não coercivos, e sim coesivos, sustentadores do discurso e permissores de inferências indutivas e dedutivas, promovendo cumplicidades com o mundo e entre mundos: o mundo do ator e o do seu público juntamente com o mundo da arte; promovendo cumplicidades das gentes e dos gostos, tudo pelos caminhos das sedutoras cumplicidades discursivas.

 

[Autoria: SÔNIA MOURA]   

DUAS FAMÍLIAS EM “A CAVERNA” DE SARAMAGO

                                  Família de Papel


DUAS FAMÍLIAS NA CAVERNA 

Um breve estudo sobre a família de A Caverna, de José Saramago –


[Autoria: SÔNIA MOURA]

Em A Caverna, Saramago nos traz o modelo da família portuguesa do séc. XX – a família nuclear, na qual as relações familiares se definem por atitudes pontilhadas de afetividade, como se pode observar ao longo de toda a narrativa: “… tinha-se posto no lugar do pai e sofreu como ele estava sofrendo…” (AC – p.35).
Unidos na dor e na alegria, Cipriano Algor, a filha e o genro (que não tem uma relação das melhores com os pais) vivem naquela rotina tão mal falada e tão desejada; não há traição, desconfiança, descasos, todos se ajudam, mesmo no momento de maior conflito: a ida para o centro, pode-se observar que todos desejam manutenção da união familiar:

…Porque gosto de conversar consigo como se não fosse meu pai, gosto de fazer de conta, como diz, de que somos simplesmente duas pessoas que se querem muito, pai e filha que se amam … Julgava que a pior coisa que lhe poderia suceder seria ver-se separado da sua filha…(AC- p.67).

Mais tarde, dois novos membros vêm-se somar a esta família – ACHADO o cão-gente, símbolo da fidelidade canina e também símbolo da resistência e Isaura Estudiosa (Madruga), símbolo do recomeço e do amor na maturidade. A chegada de outro componente familiar é anunciada desde o início do romance, sem haver, porém, o nascimento deste novo membro das famílias Algor/Gacho.
No centro desta narrativa está a história do homem de outrora e o de agora, colocado no centro da periferia rural ou do mundo globalizado, seguindo a narrativa de Barthes que diz: . “…a escritura é um ato de solidariedade histórica.” (BARTHES, 1971 p. 23).

Colocaremos duas famílias em destaque – as duas famílas da Caverna: a família Algor e a família de papel, ambas apresentam-se socialmente {con} e [inter] textualizadas. A primeira transita entre o rural, a cidade e/ou o Centro; a segunda é a “livre e feliz” prisioneira do cartaz. Esta não transita, não fala, não reclama, não chora, apenas sorri, sorri…

A família Algor convive com o passado da olaria, com o forno antigo e suas representações simbólicas de vida (e nele que se consuma o nascimento das peças e dos bonecos de barro). Sua história dialoga, faz uma releitura e associa – se à escritura sagrada do barro transformado em gente.
Apesar de viver num mundo globalizado, o patriarca da família – Cipriano Algor – ainda consegue surpreender-se com a família de papel– representação idealizada – e, através dela, imaginar a sua própria família reprisada, e aprisionada no Centro, como a família de papel:

“Ainda acabaremos os três num cartaz daqueles, pensou, para casal jovem já têm a Marta e o marido, o avô seria eu se fossem capazes de convencer-me , avó não há, morreu há três anos, e por enquanto faltam os netos, mas no lugar deles poderíamos pôr o Achado na fotografia…” (AC- p.93)

Desta forma, apresentada em seus altos e baixos – “ …a vida das famílias nunca foi o que se pode chamar um mar de rosas, vivemos algumas horas boas, algumas horas más, e ainda muita sorte por quase todas serem assim-assim” (AC – p.211/212) a família real contracena com a família virtual, com a que pode ser desfeita com a mesma rapidez com que é feita (fotografia, computação gráfica), assim como, dependendo dos interesses em jogo, pode ser refeita. Esta é a família dos tempos globalizados: perfeita, planejada, desejada e invejada, é a intertextualização com o Centro também perfeito, planejado, desejado e invejado. Mas esta é, também, uma família – refém, uma família dublê da ilusão:

“O cartaz…exibe imagens de famílias felizes, o marido de trinta e cinco anos, a esposa de trinta e três, um filho de onze anos, uma filha de nove, e também, mas não sempre, um avô e uma avó de alvos cabelos, poucas rugas e idade indefinida, todos obrigando a sorrir as respectivas dentaduras , perfeitas, brancas, resplandecentes.”(AC – p. 93)

Referindo-se à iconografia da família no século XIV, Philippe Ariès diz que, na representação apenas um sujeito aparecia e, geralmente, sua imagem era associada a seu ofício: “era como se a vida privada de um homem fosse, antes de mais nada, seu ofício”, (ARIÉS s/d p. 196) e no século XV, segundo Ariès, começavam a mostrar a representação familiar, a vida privada, a partir da rua (público) para depois trazê-la, outra vez, ao âmbito do privado. O cartaz do Centro de A Caverna (séc. XX), exibe a vida privada e a representação da família como sendo, antes de mais nada, o modelo de felicidade, harmonia, beleza, equilíbrio; esta é uma família modelo (todos são modelos ganhando os seus cachês!).

Sennet afirma que “o público era uma criação humana; o privado era a condição humana”, no centro, o público e o privado estão acorrentados na mesma cena e no mesmo cenário , embora feita de papel, é a representação familiar, portanto, contemporaneamente, ligada ao privado, confinado no cartaz que está dentro do Centro, espaço público, (embora ali também se instalasse o privado à moradias, apartamentos), desta maneira a dupla representação (con)funde-se num único bloco.

Considerando- se serem aqueles que moravam fora do Centro um “grupo” à parte, e, sem perdermos de vista as diferenças de cada época e de cada período histórico no que concerne ao conceito sobre a família e sociedade, se voltarmos à Idade Média, encontraremos o público e o privado habitando o mesmo espaço físico. Estaria a família de papel, presa no cartaz do centro, represando o mito do eterno retorno?

Falando sobre a personalidade coletiva, Richard Sennet diz que: “ A entrada da personalidade para dentro do domínio público, no século XIX, preparou a base para a sociedade intimista” (SENNETp.271), e, para ele, a sociedade intimista apóia- se em dois pontos, em dois princípios: o narcisismo e a comunidade destrutiva; enquanto o primeiro obscurece a capacidade de julgamento da realidade, o segundo, aprisiona as pessoas. (SENNET 271).

No Centro, por certo, estes princípios são colocados em prática, e esta família de papel retratada dentro deste universo, espelha o fantástico mundo das ilusões, da organização, da manipulação. O Centro aprisiona as famílias reais e a família do mundo fictício, do mundo da dependência econômica, espacial e psicológica, é a família- mito. A imagem desta família enquadrada, empapelada, colorida é a intertextualidade, é o presente, é o retrato revelador do que o Centro faz às pessoas: molda vidas, famílias, sorrisos, máscaras, tirando-lhes o desejo de reação e de percepção, muito comum nos dias atuais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar Editores, s.d.

BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. Trad.: Anne Arnichand e Alvaro Lorencini. São Paulo: Cultrix, 1971.

CAMPOS, Simone Silva. No Shopping. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Trad. Estela S. Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

SARAMAGO, José. A CAVERNA. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SENNET, R. O declínio do homem público – As tiranias da intimidade. – 7. reimp. Trad. Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

{A sigla AC refere-se à obra em estudo: A Caverna de José Saramago.}

Autoria: SÔNIA MOURA

O PRESENTE DE LÍGIA

presente

O PRESENTE DE LÍGIA


(Autoria: SÔNIA MOURA)

Recebo, por e.mail, uma presente da minha amiga Lígia Coelho. Seria somente mais uma mensagem acompanhada de um pps. Todos sabemos que existem centenas deles, no entanto, ao desembrulhar meu presente, quedo-me ante sua singeleza, sou capturada, sinto-me a prisioneira mais liberta e me permito viagens, entre elas, criar novas imagens por meio do que escrevo agora.

As imagens do pintor Iman Maleki, a música de Bach e os textos de Cora Coralina, reunidos por J. Meirelles, na Série: “Arte e Reflexão”, conduziram-me para o centro de suas mensagens, tomaram-me pelas mãos da sensibilidade e transformaram esta manhã nublada e chuvosa de domingo, em um dia de luz.

Para me seduzir ainda mais, paralelamente, um belíssimo programa, sobre esculturas e escultores e sobre pinturas e pintores, mostrava desde a arte dos egípcios, passava pelos gregos, por Picasso, chegando até aos programas de computadores, todos tratando de desenhos e de formas (TV Cultura).

Enquanto olho a pintura da natureza, que, nesta manhã insiste em usar a tinta cinza, própria para desenhar manhãs nubladas, o êxtase,  promovido pelas cores de Iman, pelas palavras de Cora, pela ousadia de Picasso, pelas formas dos egípcios e dos gregos,  me faz olhar a manhã nublada por meio das luzes destes textos iluminados.Ora meus olhos, ora meus ouvidos vão sendo atraídos e se sentem divididos, diluídos em meio a essas diversas formas textuais, que vão cooptando meu prazer para a alegria.

Assim, dividida entre as telas, captando imagens nascidas dos pincéis e das tintas de Iman Maleki; das penas e da tinta de Cora Coralina e das esculturas e pintores de tantos e de todos os tempos, crio uma terceira tela, captando imagens para tela do meu celular, fotografando a tela do meu computador, para o qual devolverei estas mesmas imagens e que, possivelmente, irão para outra “tela” de papel, ao serem impressas.

Feito por palavras que se aliam a imagens, locupletando-se, este círculo de imagens inebriantes e embriagantes, confirmam o maior de todos os valores da arte: a emoção captada, seja de que forma for, nos alimenta, registra o tempo e a história, pelo horizonte do artista e do seu tempo. Isto é a vida marcada por penas, por pincéis, por cliques, por ferramentas diversas, que conseguem transformar tanto a pedra bruta, como a tela ou o papel em branco em poesia, pura poesia. Afirmar qualquer coisa contrária será a mais exorbitante heresia.

Ao final, ainda sou brindada com um programa televiso (TVBrasil) que mostra a grande artista, a pianista brasileira Guiomar Novaes. Ainda, neste mesmo dia, assisto (TV Brasil) a declarações de um músico de rua, um depoimento tão sincero e tão comovente, que paro tudo para ouvi-lo declarar seu amor à arte; a seguir, vejo o trabalho de um santeiro modesto, que declara que sua fé está em sua arte, e sua arte alimenta sua fé. Só para completar, ouço/vejo Egberto Gismonti. Demais!

Realmente, este domingo nublado, chuvoso que normalmente seria triste para qualquer carioca, que como eu, ama o sol, as luzes, o calor e as cores, torna-se belo, torna-se totalmente preenchido, pois consigo vê-lo através de muitas formas de arte. E tudo começou com o presente da minha amiga Lígia.

Toda esta mistura de arte e de artistas é mostrada como a migração da emoção através de todos os tempos. Então, me pergunto se o homem sobreviveria sem a presença da arte e das formas artísticas. Creio que não, o tempo é tão efêmero, nos escapa tão rapidamente que, mesmo a criação de um instrumento para registrar o tempo, não consegue aprisioná-lo, mas a arte sim, ela consegue trazer o tempo de volta ou nos projetar para o futuro, fazendo-nos felizes no tempo presente.

A arte não é objetivamente utilitária, mas, subjetivamente, nada mais útil à história, à memória, à emoção e à lembrança que a arte, pois é ela que nos dá a verdadeira direção de como sopravam os ventos em tempos de ontem e como sopram os ventos nos tempos de hoje e, além do mais, a arte também ousa fazer previsões sobre os ventos dos tempos futuros.

Para mim, o homem, assim como o tempo, sobrevive na arte e pela arte. E ainda há quem pergunte qual a função da arte. Tolos!

(Lígia, obrigada, muito obrigada!) 

O ENIGMA DO ENIGMA

Kaspar Hauser (Sobre o filme O ENIGMA DE KASPAR HAUSER)

Disse a esfinge: “- Decifra-me ou te devoro!” A lenda se reprisa e leva o medo a comandar o homem e seu destino, então, este segue tentando decifrar os enigmas alheios, quando, na verdade, não consegue decifrar os seus próprios enigmas.

Somos cegos ao óbvio, preferimos escutar o silêncio a ouvir qualquer grito, escondemo-nos atrás de nós mesmos, atrás de dogmas, de convenções, atrás de leis. Nós somos o verdadeiro enigma.

O que fazemos ao semelhante se ele é apenas “diferente”?

Somos únicos e não percebemos isto, porque não queremos ver as diferenças. Difícil é desmontar a estrutura montada, difícil é olhar o mundo sem usar as muletas dos olhares alheios, difícil é se afastar do refúgio primeiro – a caverna matriarcal e não se tornar prisioneiro voluntário de um cenário, tingido com tintas sombrias, denominado mundo.

O Enigma de Kaspar Hauser* traz à baila a realidade contingente do mundo e apresenta um homem confuso, agarrado a sua barra de solidão, forçado a tentar alcançar um caminho estranho , lançado numa floresta social que vai impor-lhe uma idealidade de valores existenciais tipificados.

Através de imagens, diálogos, fatos, jogos de luzes e movimentos, as possibilidades de representação de um contexto social movem-se entre o real e o imaginado.

O desenrolar da narrativa , pela linguagem cinematográfica, estabelece condições para que a própria personagem defina por palavras e atos como realmente vê o mundo, mesmo quando o curso circunstancial da história impõe-lhe mudanças de comportamento ou quando o contexto social insiste em anular-lhe a individualidade e o modo de ele sentir o mundo.

Os olhares, que primeiro pensam ver Kaspar Hauser, não pretendem vê-lo, na verdade sequer olham para o mesmo, são os olhares dos poderes e dos poderosos, são os olhares socialmente padronizados,cheios de curiosidade e total indiferença ao semelhante, que vão traçar o perfil histórico, psicológico e comportamental, desenhando-lhe uma silhueta sem alma.

O elemento diferenciador, dentro do mundo- caverna de Kaspar Hauser, era o cavalinho de madeira. Quem teria deixado ali o  cavaleiro e o cavalo?

Segundo Chevalier e Gheerbrant (Dicionário dos Símbolos).“…os psicanalistas fizeram do cavalo o símbolo do psiquismo inconsciente ou da psique não humana, arquétipo próximo ao da Mãe, memória do mundo, ou então ao do tempo, porquanto está ligado aos grandes relógios naturais, ou ainda, ao da impetuosidade do desejo.”

Enveredando pelo caminho da evocação simbólica, Herzog ergue a ponte entre o consciente e o inconsciente e faz ressurgir memórias, colocando, ante o espectador atento, a possibilidade do questionamento da postura e da atitude frente à vida, sobre o modo de ver o mundo particular e o mundo geral , instigando-o a ver além das aparências do que se move na tela e do que se move no mundo.

As imagens transmutadas para a tela, se vistas pela lente da reflexão e não pelo simples ato de enxergar, permitirão, certamente, uma leitura crítica resultante, não da questão meramente estética ou de umas das funções do cinema – entretenimento, e sim do lineamento perceptivo dos questionamentos apresentados.

Aproximando o espectador cuidadoso de uma postura crítica, por meio de associações simbólicas, por exemplo, o pássaro preso (primeira tomada) e o pássaro livre sendo alimentado por K.Hauser (tomadas posteriores); as frestas pelas quais é permitido ao personagem central ver o mundo, sem ser visto por ele, são recursos que fazem os pensamentos se convergirem para uma análise cuidadosa da trama central do filme: os equívocos nascidos de visões e percepções insuficientemente delineadas por uma sociedade impiedosa e pouco interessada em ver o outro (salvo uma única exceção- as dos que vêm o mundo com os olhos da igualdade e/ou desprovidos de preconceitos).

A ilusão de que Kaspar Hauser está sendo visto é pintada com pinceladas da curiosidade desperatada pelo que chega, mas são as intenções deformadoras destes olhares que apagam a ilusão, retirando as máscaras diluídas pela intenção ficcional.

Marionete nas mãos de muitos, a começar por sua caracterização física, o protagonista torna-se motivo de todas as formas de especulações que vão da sua origem até depois de sua morte, sempre na tentativa de decifrar-se o que para olhos vendados por convenções e juízos de valores transforma-se em enigma.

As versões sobre o seu passado e a sua origem transitam entre o ideal do cavaleiro das Novelas de Cavalaria; retomado pelo mundo Romântico, bem como, a origem nobiliárquica, roça o ideal do “bom selvagem” do pensador iluminista Jean-Jacques Rousseau e culmina com a negação do ser, colocando sua origem atrelada a dos reles mortais, inexpressivo e desinteressante para o jogo social.

Após sua morte, os cientistas tentam justificar ou explicar o inexplicável, no entanto, para o espectador cuidadoso, logo privilegiado, a esta altura do filme, a imagem essencial da personagem, permanece vitalizada e a autópsia a ser feita não é em Kaspar Hauser e sim no corpus da visão comportamental de uma sociedade que não consegue perceber, não consegue sentir, restando-lhe então “alegrias” da lavra de um grande processo e a imagem da empáfia com seus enormes óculos escuros a tentar justificar-se por meio de necrópsias.

Kaspar Hauser e sua perpcepção do mundo derrubam conceitos científicos, ironizam o estabelecido e apontam o jugo do saber científico que, quase sempre, não admite novas formas de pensar, este é um grande trunfo de poder, por isto é domínio de poucos.

Quem realmente vê é o cego, ou melhor, apenas um deles, o cego do mundo do sonho, pois o cego do “mundo real” não enxerga, não fala, não ouve e não reage, este cego não é guia, ele é guiado, assim se apresentam as outras personagens deste filme, teleguiados, cegos por olharem apenas para o que julgam ser real, afastam-se do sonho e da fantasia Quando percebermos que o sonho e a realidade se confundem e (é bom que assim seja) se completam, por certo teremos alcançado uma visão de mundo mais clara e eficiente.

A lógica plausível de Kaspar Hauser reflete sua concepção de universo e coloca-nos frente a duas esferas espaciais, alertando o cético e o científico de que outros caminhos existem: as percepções sensoriais, a experimentação, a objetividade e a subjetividade.

A câmera instiga o olhar ao passear por imagens da imagem – a que se reflete e a que se permite refletir na água da tina. A primeira torna-se pouco visível, distorcida , confunde e pode-se fazer confundir, tudo vai depender de como a mão manipula o espelho da/de água.

Verdade/mentira; sonho/realidade; vida/morte são grandes enigmas que a humanidade insiste em decifrar. Mas o Enigma de Kaspar Hauser,  símbolo do próprio enigma de cada um de nós, é muito difícl de ser resolvido e o monstro do medo pode-nos devorar, só há uma saída: matar a esfinge.

“A verdadeira história eu não sei”, assim falamos pela boca de Kaspar Hauser.

Filme – título original: Jeder Für Sich und Gott Gegen Alle (Alemanha, 1974) Diretor: Werner Herzog

SINOPSE: Em 1828, em Nuremberg, o misterioso jovem Kaspar Hauser é deixado em uma praça após passar toda a vida trancado em uma torre. Aos poucos, ele tenta se integrar à sociedade e entender sua complexidade.

[Por SÔNIA MOURA – UFF 2003]