O ENIGMA DO ENIGMA

Kaspar Hauser (Sobre o filme O ENIGMA DE KASPAR HAUSER)

Disse a esfinge: “- Decifra-me ou te devoro!” A lenda se reprisa e leva o medo a comandar o homem e seu destino, então, este segue tentando decifrar os enigmas alheios, quando, na verdade, não consegue decifrar os seus próprios enigmas.

Somos cegos ao óbvio, preferimos escutar o silêncio a ouvir qualquer grito, escondemo-nos atrás de nós mesmos, atrás de dogmas, de convenções, atrás de leis. Nós somos o verdadeiro enigma.

O que fazemos ao semelhante se ele é apenas “diferente”?

Somos únicos e não percebemos isto, porque não queremos ver as diferenças. Difícil é desmontar a estrutura montada, difícil é olhar o mundo sem usar as muletas dos olhares alheios, difícil é se afastar do refúgio primeiro – a caverna matriarcal e não se tornar prisioneiro voluntário de um cenário, tingido com tintas sombrias, denominado mundo.

O Enigma de Kaspar Hauser* traz à baila a realidade contingente do mundo e apresenta um homem confuso, agarrado a sua barra de solidão, forçado a tentar alcançar um caminho estranho , lançado numa floresta social que vai impor-lhe uma idealidade de valores existenciais tipificados.

Através de imagens, diálogos, fatos, jogos de luzes e movimentos, as possibilidades de representação de um contexto social movem-se entre o real e o imaginado.

O desenrolar da narrativa , pela linguagem cinematográfica, estabelece condições para que a própria personagem defina por palavras e atos como realmente vê o mundo, mesmo quando o curso circunstancial da história impõe-lhe mudanças de comportamento ou quando o contexto social insiste em anular-lhe a individualidade e o modo de ele sentir o mundo.

Os olhares, que primeiro pensam ver Kaspar Hauser, não pretendem vê-lo, na verdade sequer olham para o mesmo, são os olhares dos poderes e dos poderosos, são os olhares socialmente padronizados,cheios de curiosidade e total indiferença ao semelhante, que vão traçar o perfil histórico, psicológico e comportamental, desenhando-lhe uma silhueta sem alma.

O elemento diferenciador, dentro do mundo- caverna de Kaspar Hauser, era o cavalinho de madeira. Quem teria deixado ali o  cavaleiro e o cavalo?

Segundo Chevalier e Gheerbrant (Dicionário dos Símbolos).“…os psicanalistas fizeram do cavalo o símbolo do psiquismo inconsciente ou da psique não humana, arquétipo próximo ao da Mãe, memória do mundo, ou então ao do tempo, porquanto está ligado aos grandes relógios naturais, ou ainda, ao da impetuosidade do desejo.”

Enveredando pelo caminho da evocação simbólica, Herzog ergue a ponte entre o consciente e o inconsciente e faz ressurgir memórias, colocando, ante o espectador atento, a possibilidade do questionamento da postura e da atitude frente à vida, sobre o modo de ver o mundo particular e o mundo geral , instigando-o a ver além das aparências do que se move na tela e do que se move no mundo.

As imagens transmutadas para a tela, se vistas pela lente da reflexão e não pelo simples ato de enxergar, permitirão, certamente, uma leitura crítica resultante, não da questão meramente estética ou de umas das funções do cinema – entretenimento, e sim do lineamento perceptivo dos questionamentos apresentados.

Aproximando o espectador cuidadoso de uma postura crítica, por meio de associações simbólicas, por exemplo, o pássaro preso (primeira tomada) e o pássaro livre sendo alimentado por K.Hauser (tomadas posteriores); as frestas pelas quais é permitido ao personagem central ver o mundo, sem ser visto por ele, são recursos que fazem os pensamentos se convergirem para uma análise cuidadosa da trama central do filme: os equívocos nascidos de visões e percepções insuficientemente delineadas por uma sociedade impiedosa e pouco interessada em ver o outro (salvo uma única exceção- as dos que vêm o mundo com os olhos da igualdade e/ou desprovidos de preconceitos).

A ilusão de que Kaspar Hauser está sendo visto é pintada com pinceladas da curiosidade desperatada pelo que chega, mas são as intenções deformadoras destes olhares que apagam a ilusão, retirando as máscaras diluídas pela intenção ficcional.

Marionete nas mãos de muitos, a começar por sua caracterização física, o protagonista torna-se motivo de todas as formas de especulações que vão da sua origem até depois de sua morte, sempre na tentativa de decifrar-se o que para olhos vendados por convenções e juízos de valores transforma-se em enigma.

As versões sobre o seu passado e a sua origem transitam entre o ideal do cavaleiro das Novelas de Cavalaria; retomado pelo mundo Romântico, bem como, a origem nobiliárquica, roça o ideal do “bom selvagem” do pensador iluminista Jean-Jacques Rousseau e culmina com a negação do ser, colocando sua origem atrelada a dos reles mortais, inexpressivo e desinteressante para o jogo social.

Após sua morte, os cientistas tentam justificar ou explicar o inexplicável, no entanto, para o espectador cuidadoso, logo privilegiado, a esta altura do filme, a imagem essencial da personagem, permanece vitalizada e a autópsia a ser feita não é em Kaspar Hauser e sim no corpus da visão comportamental de uma sociedade que não consegue perceber, não consegue sentir, restando-lhe então “alegrias” da lavra de um grande processo e a imagem da empáfia com seus enormes óculos escuros a tentar justificar-se por meio de necrópsias.

Kaspar Hauser e sua perpcepção do mundo derrubam conceitos científicos, ironizam o estabelecido e apontam o jugo do saber científico que, quase sempre, não admite novas formas de pensar, este é um grande trunfo de poder, por isto é domínio de poucos.

Quem realmente vê é o cego, ou melhor, apenas um deles, o cego do mundo do sonho, pois o cego do “mundo real” não enxerga, não fala, não ouve e não reage, este cego não é guia, ele é guiado, assim se apresentam as outras personagens deste filme, teleguiados, cegos por olharem apenas para o que julgam ser real, afastam-se do sonho e da fantasia Quando percebermos que o sonho e a realidade se confundem e (é bom que assim seja) se completam, por certo teremos alcançado uma visão de mundo mais clara e eficiente.

A lógica plausível de Kaspar Hauser reflete sua concepção de universo e coloca-nos frente a duas esferas espaciais, alertando o cético e o científico de que outros caminhos existem: as percepções sensoriais, a experimentação, a objetividade e a subjetividade.

A câmera instiga o olhar ao passear por imagens da imagem – a que se reflete e a que se permite refletir na água da tina. A primeira torna-se pouco visível, distorcida , confunde e pode-se fazer confundir, tudo vai depender de como a mão manipula o espelho da/de água.

Verdade/mentira; sonho/realidade; vida/morte são grandes enigmas que a humanidade insiste em decifrar. Mas o Enigma de Kaspar Hauser,  símbolo do próprio enigma de cada um de nós, é muito difícl de ser resolvido e o monstro do medo pode-nos devorar, só há uma saída: matar a esfinge.

“A verdadeira história eu não sei”, assim falamos pela boca de Kaspar Hauser.

Filme – título original: Jeder Für Sich und Gott Gegen Alle (Alemanha, 1974) Diretor: Werner Herzog

SINOPSE: Em 1828, em Nuremberg, o misterioso jovem Kaspar Hauser é deixado em uma praça após passar toda a vida trancado em uma torre. Aos poucos, ele tenta se integrar à sociedade e entender sua complexidade.

[Por SÔNIA MOURA – UFF 2003]


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