DUAS FAMÍLIAS EM “A CAVERNA” DE SARAMAGO

                                  Família de Papel


DUAS FAMÍLIAS NA CAVERNA 

Um breve estudo sobre a família de A Caverna, de José Saramago –


[Autoria: SÔNIA MOURA]

Em A Caverna, Saramago nos traz o modelo da família portuguesa do séc. XX – a família nuclear, na qual as relações familiares se definem por atitudes pontilhadas de afetividade, como se pode observar ao longo de toda a narrativa: “… tinha-se posto no lugar do pai e sofreu como ele estava sofrendo…” (AC – p.35).
Unidos na dor e na alegria, Cipriano Algor, a filha e o genro (que não tem uma relação das melhores com os pais) vivem naquela rotina tão mal falada e tão desejada; não há traição, desconfiança, descasos, todos se ajudam, mesmo no momento de maior conflito: a ida para o centro, pode-se observar que todos desejam manutenção da união familiar:

…Porque gosto de conversar consigo como se não fosse meu pai, gosto de fazer de conta, como diz, de que somos simplesmente duas pessoas que se querem muito, pai e filha que se amam … Julgava que a pior coisa que lhe poderia suceder seria ver-se separado da sua filha…(AC- p.67).

Mais tarde, dois novos membros vêm-se somar a esta família – ACHADO o cão-gente, símbolo da fidelidade canina e também símbolo da resistência e Isaura Estudiosa (Madruga), símbolo do recomeço e do amor na maturidade. A chegada de outro componente familiar é anunciada desde o início do romance, sem haver, porém, o nascimento deste novo membro das famílias Algor/Gacho.
No centro desta narrativa está a história do homem de outrora e o de agora, colocado no centro da periferia rural ou do mundo globalizado, seguindo a narrativa de Barthes que diz: . “…a escritura é um ato de solidariedade histórica.” (BARTHES, 1971 p. 23).

Colocaremos duas famílias em destaque – as duas famílas da Caverna: a família Algor e a família de papel, ambas apresentam-se socialmente {con} e [inter] textualizadas. A primeira transita entre o rural, a cidade e/ou o Centro; a segunda é a “livre e feliz” prisioneira do cartaz. Esta não transita, não fala, não reclama, não chora, apenas sorri, sorri…

A família Algor convive com o passado da olaria, com o forno antigo e suas representações simbólicas de vida (e nele que se consuma o nascimento das peças e dos bonecos de barro). Sua história dialoga, faz uma releitura e associa – se à escritura sagrada do barro transformado em gente.
Apesar de viver num mundo globalizado, o patriarca da família – Cipriano Algor – ainda consegue surpreender-se com a família de papel– representação idealizada – e, através dela, imaginar a sua própria família reprisada, e aprisionada no Centro, como a família de papel:

“Ainda acabaremos os três num cartaz daqueles, pensou, para casal jovem já têm a Marta e o marido, o avô seria eu se fossem capazes de convencer-me , avó não há, morreu há três anos, e por enquanto faltam os netos, mas no lugar deles poderíamos pôr o Achado na fotografia…” (AC- p.93)

Desta forma, apresentada em seus altos e baixos – “ …a vida das famílias nunca foi o que se pode chamar um mar de rosas, vivemos algumas horas boas, algumas horas más, e ainda muita sorte por quase todas serem assim-assim” (AC – p.211/212) a família real contracena com a família virtual, com a que pode ser desfeita com a mesma rapidez com que é feita (fotografia, computação gráfica), assim como, dependendo dos interesses em jogo, pode ser refeita. Esta é a família dos tempos globalizados: perfeita, planejada, desejada e invejada, é a intertextualização com o Centro também perfeito, planejado, desejado e invejado. Mas esta é, também, uma família – refém, uma família dublê da ilusão:

“O cartaz…exibe imagens de famílias felizes, o marido de trinta e cinco anos, a esposa de trinta e três, um filho de onze anos, uma filha de nove, e também, mas não sempre, um avô e uma avó de alvos cabelos, poucas rugas e idade indefinida, todos obrigando a sorrir as respectivas dentaduras , perfeitas, brancas, resplandecentes.”(AC – p. 93)

Referindo-se à iconografia da família no século XIV, Philippe Ariès diz que, na representação apenas um sujeito aparecia e, geralmente, sua imagem era associada a seu ofício: “era como se a vida privada de um homem fosse, antes de mais nada, seu ofício”, (ARIÉS s/d p. 196) e no século XV, segundo Ariès, começavam a mostrar a representação familiar, a vida privada, a partir da rua (público) para depois trazê-la, outra vez, ao âmbito do privado. O cartaz do Centro de A Caverna (séc. XX), exibe a vida privada e a representação da família como sendo, antes de mais nada, o modelo de felicidade, harmonia, beleza, equilíbrio; esta é uma família modelo (todos são modelos ganhando os seus cachês!).

Sennet afirma que “o público era uma criação humana; o privado era a condição humana”, no centro, o público e o privado estão acorrentados na mesma cena e no mesmo cenário , embora feita de papel, é a representação familiar, portanto, contemporaneamente, ligada ao privado, confinado no cartaz que está dentro do Centro, espaço público, (embora ali também se instalasse o privado à moradias, apartamentos), desta maneira a dupla representação (con)funde-se num único bloco.

Considerando- se serem aqueles que moravam fora do Centro um “grupo” à parte, e, sem perdermos de vista as diferenças de cada época e de cada período histórico no que concerne ao conceito sobre a família e sociedade, se voltarmos à Idade Média, encontraremos o público e o privado habitando o mesmo espaço físico. Estaria a família de papel, presa no cartaz do centro, represando o mito do eterno retorno?

Falando sobre a personalidade coletiva, Richard Sennet diz que: “ A entrada da personalidade para dentro do domínio público, no século XIX, preparou a base para a sociedade intimista” (SENNETp.271), e, para ele, a sociedade intimista apóia- se em dois pontos, em dois princípios: o narcisismo e a comunidade destrutiva; enquanto o primeiro obscurece a capacidade de julgamento da realidade, o segundo, aprisiona as pessoas. (SENNET 271).

No Centro, por certo, estes princípios são colocados em prática, e esta família de papel retratada dentro deste universo, espelha o fantástico mundo das ilusões, da organização, da manipulação. O Centro aprisiona as famílias reais e a família do mundo fictício, do mundo da dependência econômica, espacial e psicológica, é a família- mito. A imagem desta família enquadrada, empapelada, colorida é a intertextualidade, é o presente, é o retrato revelador do que o Centro faz às pessoas: molda vidas, famílias, sorrisos, máscaras, tirando-lhes o desejo de reação e de percepção, muito comum nos dias atuais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar Editores, s.d.

BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. Trad.: Anne Arnichand e Alvaro Lorencini. São Paulo: Cultrix, 1971.

CAMPOS, Simone Silva. No Shopping. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Trad. Estela S. Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

SARAMAGO, José. A CAVERNA. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SENNET, R. O declínio do homem público – As tiranias da intimidade. – 7. reimp. Trad. Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

{A sigla AC refere-se à obra em estudo: A Caverna de José Saramago.}

Autoria: SÔNIA MOURA

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