CURVAS NA SEARA DE VENTO – II (Exemplificando…)

 CURVAS NA SEARA DE VENTO – II (Exemplificando…)

CURVAS NA SEARA DE VENTO – II (Exemplificando…)

 (UFF – Seminário – 2008)

A título de exemplificação, selecionamos passagens da obra de Manuel da Fonseca – Seara de Vento- nas quais o verbo curvar-se e outros vocábulos com significações aproximadas ao verbo curvar-se, destacam-se, dando respaldo a nossas colocações no texto do mesmo título, publicado em 18/05/2010, neste blog.

 

 

*CURVAR-(SE) – ABAIXAR, ABATER, AGACHAR, AJOELHAR, ARQUEAR, DOBRAR, EMPENADO, ENCOLHER, ENCURVAR, FLECTIR FLEXIONAR, HUMILHAR, INCLINAR, PENDER, PROSTAR, ROJAR, SUBMETER, VERGAR (*-SE)

 

·       Júlia  encolhida e receosa, como se acabasse de ouvir uma blasfémia. (medo/mãe)  11

·       A curva das costas de Júlia, muito magras, aumenta mais o seu ar de desalento. Triste e fraca, parece vergada ao peso da culpa ou de um remorso. 12        *

·       Amanda Carrusca encolhe-se , de face sumida no bioco do lenço. 14

·       O tom de ameaça confrange as mulheres. Curvam-se mais ainda,… 15    *

·       De mão no ar, cresce sobre Júlia que se dobra desamparada.  17

·       Meio zambro, esquelético, o queixo encostado ao peito, (Joaquim Valmurado) erra pelo terreiro… 19

·       Todo arqueado (Joaquim), estende os braços para as ruínas do forno.  20

·       Prostrado (Joaquim), queda-se a cogitar diante dos pedregulhos. 20

·       (Amanda) ao descer do banco, meio curvada, olha intencionalmente… 25   *

·       (Júlia) Ajoelha-se e ensopa a ponta do lenço. 28

·       (Bento) Entontecido, curva-se para o umbigo. 32                   *

·       (Bento) …a cabeça pende-lhe para o umbigo. 33

·       Todo curvado debaixo do alforge, João Carrusca… 35           *

·       … o corpo afrouxa, verga. (João)

·       A velha baixa as pálpebras, curva-se.  41                   *

·       (Amanda) Toda dobrada, apara as arremetidas do Bento… 42

·       (Amanda) Encolhe a cabeça entre os ombros aguçados.  45

·       (Júlia) Frouxa, de ombros descaídos, senta-se à lareira.  52

·       (Palma) Meio curvado, desanda pelo mato dentro.  54               *

·        O pastor detém-se todo curvado, numa ameaça.   55                  *

·       Palma… apanha o chapéu e atravessa a clareira, meio curvado   57       *

·       Júlia curva-se sobre a tigela fumegante          63              *

·       (Palma) De peito arqueado, ajeita as calças         64

·       ……dobra-lhe a aba do chapéu  77

·        Tombada para a nuca, a larga aba  negra do chapéu…. 78

·       Curvados sob as cargas, os homens emergem do chão negro…. 87        *

·       Júlia e Amanda Carrusca curvam-se.              122              *

·       (Palma) Atirado de joelhos contra o chão, dobra-se todo           147

·       Uma dor fina dobra o corpo de Júlia           166

·       (Palma) Enfadado, encolhe os ombros.            175

·       (Júlia) De joelhos, tombada                 177

·       Mas Diogo, sempre curvado                187          *

·           Homens trazem o caixão….De cabeças vergadas.          190

·       Palma recua…..ao curvar-se              196                 *

·       (Palma) Curvado, espia por cima dos arbustos.        203         *

·       De boca escancarada, joelhos dobrados, Elias sobral…       204

·       Transida, Lina abaixa  a cabeça. As pernas dobram- se –lhe        205

·       O Palma curva-se                       213                 *

·       O frio repassa-o, dói-lhe o corpo de andar tanto tempo curvado.     215     *

·       (Guarda)  Um deles, curvado               226         *

·       (Palma) Curva-se e rompe a calça.             227              *

·       Mariana dobra a cabeça para o peito.          230             

·       (Palma) A violência da emoção verga-lhe as pernas. Cai de joelhos…233

·       (Palma) A rajada apanha-o pelo tronco de alto a baixo, curva-o.      244     *

 

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* FONSECA, Manuel da. Seara de Vento. Lisboa: Editorial Caminho, 1988.

 

 

CURVAS NA SEARA DE VENTO

 CURVAS NA SEARA DE VENTO

CURVAS NA SEARA DE VENTO  (Autoria: Sônia Moura)

(UFF – Seminário – 2008)

Em Seara de Vento de Manuel da Fonseca, o verbo curvar-se e seus sinônimos se apresentam como metáforas- síntese do romance, dando a estas palavras mobilidades significativas capazes de mostrar os múltiplos aspectos de uma realidade que o texto irá ficcionar. Assim, as denúncias reveladoras do estado sócio- político em Portugal, entrega ao leitor a forma visível deste momento histórico que tenta tornar o homem invisível pois, como dizem George Lakoff e Mark Johnson em Methaphors we live by: “… na maioria dos casos, o que está em evidência, não é a verdade ou falsidade de uma metáfora, mas as percepções e inferências tiradas dela e as ações sancionadas por ela.”..

Na base do sistema conceitual da expressão curvar-se, encontramos diversas referências metafóricas: gesto de humildade práticas orientais, humildade, adoração e submissão – religiões (judeus, cristãos, muçulmanos, espíritas), curvar-se ante a beleza/ admiração e outros. Metaforicamente, também encontramos, a expressão curvar-se diluída pela presença do verbo cair: “cair de quatro”; “cair de amor”.

Nesta obra de Manuel da Fonseca, a expressão em destaque desdobra-se em muitas possibilidades significativas, como metáfora recorrente, cuja base está voltada para a idéia de sujeitar-se a; ser obrigado a ou  estar sujeito a –, neste contexto, esta metáfora e suas diversificações referem-se à sujeição política a que estavam expostos os personagens da estória e da história.

Assim, pela presença e mobilidade da força metafórica, alguns aspectos: tristeza, infelicidade, submissão, ódio, impotência, indiferença, descaso, pactuações, sofrimentos e violências evidenciam-se na narrativa e explodem aos olhos do leitor, dando ao texto uma força subjetiva, pelas transposições de sentidos de representação da realidade discursiva, ratificando, deste modo,  o que afirma Paul Ricouer, “não há metáfora viva no dicionário e sim no discurso”.

O vocábulo curvar-se e seus sinônimos são empregados como metáforas in absentia  – nas quais o veículo está presente e o teor, ausente- deixando ao leitor o dever e o prazer de descobrir o teor e o que constitui a similaridade entre elas e o veículo, e, por meio de conceitos (in)distintos a sociedade e seus pilares – público ou privado, são apresentados ao leitor pela força da representação da linguagem e de suas relações contextuais.

Aristóteles considerava que as imagens poéticas, ao criarem transposição de sentido, como acontece com as metáforas, introduzem um elemento imprevisto e estranho, deste modo, eclipsado.

Nesta obra, o teor metafórico reprisa o momento vivenciado pelos personagens oprimidos e também eclipsados por uma sociedade na qual, várias formas de violência destroem e destronam o indivíduo e a família, limitando espaços físicos, psicológicos e sociais, fazendo com que as fronteiras do público e do privado se curvem ao momento histórico, provocando no leitor o  desejo de decifração das tensões textuais e sociais.

Na maior parte da narrativa, as expressões metafóricas do verbo curvar-se apontam personagens submersos no caos social, impossibilitados de comunicar-se, de lutar, de sentir alegria; colocando-os na condição de isolamento social e familiar. É por meio do teor metafórico que suas vozes explodirão, elas virão nas asas do vento e serão espalhadas pela seara e pelas sendas narrativas, pois o autor animiza o vento e a este é dado o poder de chorar, gritar e sussurrar pelos personagens.

O compromisso ideológico do neo- realismo parece curvar-se para captar (ou ser captado?) por estas metáforas que guardam em si uma acumulação imagística atenta a uma realidade subjetiva que se apresenta despojada de ornamentos e submetida à força metafórica da palavra curvar(-se) e de suas múltiplas associações e seus vários significados, para incorporar-se à própria realidade capturada pela ficção e permitir ao leitor um perfeito encontro com esta.

  Referências Bibliográficas

 

FONSECA, Manuel da. Seara de Vento. Lisboa: Editorial Caminho, 1988.

LAKOFF,George e JOHNSON, Mark. Metaphors We Live By. Chicago, The University of Chicago Press, 1980.

RICOUER, Paul. La Metáfora Viva. Buenos Aires, Ed. La Aurora, 1977.

PONTES, Eunice (org.).  A Metáfora. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.

 

POEMA PÓS-TUDO – AUGUSTO DE CAMPOS – PARTE V

 POEMA PÓS-TUDO – AUGUSTO DE CAMPOS – PARTE V

POEMA PÓS-TUDO – AUGUSTO DE CAMPOS – PARTE V

(Autoria: SÔNIA MOURA)

 

Concluindo…

 

O poema  PÓSTUDO  de Augusto de Campos traz a marca da modernidade  quando faz a mímese  da  linguagem pela desarticulação da palavra, a qual deixa de ser  fundamental e o que prevalece é a imagem; por isto mesmo, é uma  representação  poética  típica  do movimento concretista.

            A questão  ideológica está presente  no jogo lingüístico, quando a palavra  comum é colocada dentro de um caleidoscópio e variações infinitivas surgem, dependendo da leitura feita por cada um.

            O poema reflete a identidade de dois universos paralelos, vistos por um olho que se abre num foco e visualiza TODOS e TUDO. O processo de montagem, remontagem e desmontagem vai extrair da aparência das palavras os seus significados mais profundos, revelando o que há por trás do véu das significações, e estas, “soltas”, se recompõe e se fragmentam na página. Qualquer que seja a leitura feita deste poema, feita deste poema, vamos perceber que está em foco o confronto MODERNISMO (CONCRETISMO) x PÓS – MODERNISMO.

O título “PÓSTUDO” está diluído dentro do texto, e a “intenção” irônica, crítica, elogiosa, confissional ou intertextual só será definida pelo enfoque dado por cada leitor ao conteúdo do texto, enquanto a palavra – chave do poema (TUDO) espalha-se por toda a composição, logo, é preciso manuseá-la e as outras palavras, para podermos alcançar todas as possibilidades expressivas do poema.

            A palavra TUDO não dá ganho de causa a ninguém, não exclui ninguém, quando este vocábulo traz as marcas significativas e abrangentes da palavra TODO, que, no português antigo, traduzia simultaneamente: TODO e TUDO. No entanto, podemos dar uma “certa vantagem” ao Pós – Modernismo, já que, entre os dois, é ele que declaradamente aceita TUDO e TODOS no seu reduto.

            A palavra EIS representa uma das leituras fonéticas do prefixos EX-. Quando a empregamos, é como se a pessoa ou coisa, com que se utiliza tal palavra, fosse tirada de um TODO, de um grupo, de uma posição, de uma situação. Desta forma, pode-se aplicar a ela a mesma significação do prefixo latino ex- para exaltar o CONCRETISMO ou o PÓS – MODERNISMO.

Os prefixos PÓS- / EX- estão colocados em oposição simétrica, isolados num compartimento, sendo empregados com a ausência  do hífen. Este isolamento coloca no mesmo espaço temporal: o que veio antes (EX- = Concretismo)e o que veio depois (PÓS- =Pós – Modernismo).

            Quis, mudar, mudei, mudo, mudo, mudarei, mudaria – as formas verbais, explícitas ou implícitas, nos conduzem a entender que há o deslocamento do eu – lírico , transformado em eu – lírico crítico, que não é só do poeta, é também do leitor, daí pluralizar – se e colocar como elo entre os diversos sujeitos: o sujeito – leitor, sujeito – autor, sujeito – objeto, assim, por estas relações, percebe – se que há um intercâmbio entre o Moderno e o Pós – Moderno, dissolvido na mensagem do poema analisado.

 

BIBLIOGRAFIA

CAMPOS,Augusto.Póstudo.  Folhetim da folha de São Paulo, 27 janeiro de 1985.

 ——————-. et alii –Teoria da Poesia Concreta. SP: Invenção, 1965.

HABERMAS, Jurgen, et alii – Modernismo, Pós-Modernismo e Anti- modernismo. Arte em Revista, Ano 5 nº7, 1983.

LYOTARD, Jean- François. O Pós-Moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.

 

 

 

 

 

 

POEMA PÓS-TUDO – AUGUSTO DE CAMPOS – PARTE IV

POEMA PÓS-TUDO – AUGUSTO DE CAMPOS

POEMA PÓS-TUDO – AUGUSTO DE CAMPOS – PARTE IV

(Autoria: SÔNIA MOURA)

 

  ALGUMAS POSSIBILIDADES DE LEITURA

 O poema em estudo (PÓSTUDO), pela apresentação formal e pela assinatura de Augusto de Campos, leva-nos a analisá-lo sob o prisma do movimento concretista. No seu processo formal, a poesia concreta não utiliza a pontuação, daí a permissão mais ampla de diversas leituras, inclusive , na vertical, na horizontal ou diagonal.

Para melhor podermos explicar o conteúdos significativos destas leituras, mostraremos algumas formas de leitura do poema e, para tal, vamos empregar a pontuação e o verso (abolidos pelos concretistas).

 Dependendo da leitura que se faça, o significado geral deste poema poderá ser entendido como uma crítica ao Pós – Moderno, onde sobressaem a ironia e o descaso. Por esta ótica de leitura iremos ver o autor  reafirmando o valor de movimento  concretista e o seu próprio valor. 

 Outras leituras podem mostrar o poeta concretista  aceitando , através da reflexão , a reformulação da poesia e do fazer poético. Isto será acentuado se lermos determinadas palavras, dando –lhes novos valores semânticos.

Há, também , a possibilidade de coabitarem a crítica  e a provável reformulação de valores, levando à aceitação do  Pós – Modernismo como nova expressão literária, traço-de-união da poesia Concretista e do Pós-Modernismo. 

Neste caso, percebe-se o conflito: ao mesmo tempo, a recusa do poeta em relação ao novo, para, logo em seguida, entregar solenemente a sua rendição.

 

   ( 1 )  – CRÍTICA – IRONIA – DESCASO

 

                  MUDAR?…

                        MUDEI!…

                        QUIS TUDO, TUDO…

                        AGORA, (a) PÓS TUDO

                         EXTUDO

                         MUDO

 

 No 1º verso “MUDAR?…” aparece o ponto de interrogação seguido de reticências, indicando dúvidas sobre o que se pergunta; nota-se que a pergunta é apenas estilística, não espera resposta. (O Pós-Moderno está mudando ou mudará alguma coisa?…).

 Nota-se a ironia e a crítica contidas neste verso, pois logo em seguida vem a afirmação exclamativa “MUDEI!” (Eu mudei e não vocês pós-modernos) – este verso traz a marca da sonoridade, é como se o poeta bradasse ao escrevê-lo. O ponto de exclamação denuncia a influência da indignação do poeta que se mostra por meio de sua criação.

“QUIS TUDO, TUDO…” – as reticências acentuam a dúvida que a forma verbal “quis” sugere : (EU) QUIS (1ª ou 3ª pessoa?). Quem realmente quis (quer) tudo, tudo…? (o Moderno Concretismo ou o Pós-Modernismo?). Quem?

 “AGORA, (a) PÓS TUDO” – neste verso advérbio vem confirmar o jogo temporal (AGORA PRESENTE) em oposição às formas verbais (QUIS/MUDEI = PASSADO) = Pós-Moderno e Concretismo.

O texto original apresenta a forma “AGORAPÓSTUDO”, colocando as três palavras (AGORA, (A) PÓS, TUDO) como nova palavra formada por justaposição ou, se lermos o termo APÓS, teremos uma crase. Então, a ironia pode ser entendida pelo “embolamento” deste tudo pós-moderno.

 

 

 

 

No entanto, ao introduzirmos a vírgula, há o “descraseamento” da vogal a (agora (a) pós), permitindo a separação das palavras e daí uma nova leitura no campo semântico (a parte fonética não sofrerá alteração). 

 Se lermos AGORA PÓSTUDO, a expressão “póstudo” pode ser lida como alusão irônica ao pós-modernismo, onde tudo nada vale.

“EXTUDO” – O prefixo latino extransmuta –se no advérbio “EIS”, ao transformamos a consoante “X” no ditongo EI + s, por alusão fonética (observando –se o falar carioca). Desta forma, há mudança morfológica: EIS tudo, EIS o que resta.

 

Unindo-se esta à significação do verso seguinte “MUDO” (como sinônimo de calado), teremos: EIS TUDO CALADO. Assim, a partir de agora, por ser mais expressivo o silêncio que a palavra, o poeta e a poesia preferem calar-se diante do que resta, demonstrando total descaso em relação ao texto Pós – Moderno.

(2) – REFLEXÃO – ACEITAÇÃO

 

           MUDO, EXTUDO.

              PÓSTUDO

             TUDO AGORA MUDEI.

             QUIS MUDAR TUDO.

 

Quieto, refletindo, estudando. É desta forma que se apresenta o poeta concretista, isentando-se de tomar posições; no momento só o (EXTUDO =) ESTUDO –letra “x” representa o fonema /s/ prolongado (falar carioca).

A ler- se desta  forma, teremos o primeiro verso mostrando a sensatez  do poeta, que, embasado nos estudos, pensa cuidadosamente, e, é o ponto final que marca a pausa máxima para a reflexão.

No 2º verso – PÓSTUDO – (depois de tudo), quietude, isolamento, reflexão e estudo., poderá ser lido como: (estudo o pós – moderno).

“TUDO AGORA MUD(AR)EI / QUIS MUDAR TUDO” – Estes dois versos são marcados pela cisão temporal – agora (presente) / mudei (passado) ou mudarei (futuro) ou como o advérbio agora (agora  presente – mudarei tudo) e o verbo no futuro.

O vocábulo tudo, especialmente nesta leitura, não exclui a feitura do poema à  moda concretista, no que se refere às suas características básicas: objeto / mensagem, forma geometrizada e correspondência entre as três dimensões da palavra: semântica, sonora e gráfica.

O TUDO coloca o poema Concretista ao lado do poema Pós – Moderno, uma vez que não há questionamentos, há liberdade e aceitação (QUIS MUDAR / MUDEI AGORA), mostrando que a poeisa Pós – Moderna é receptiva.

No final, esta leitura mostra o poeta declarando, também, a sua aceitação. O mensageiro desta declaração é um poema estruturalmente CONCRETISTA. uma vez que o Pós – Moderno não rejeita o passado ou o presente, não discrimina: aceita e convive pacificamente, sem perder a sua louca lucidez.

 

(3) – CRÍTICA – REFLEXÃO – REFORMULAÇÃO(possível)

                                    

                EXTUDO TUDO MUDO.

                     PÓSTUDO, TUDO, TUDO…

                     MUDAR AGORA?

                     MUDAR (EI) (IA)?!

 

Colocando-se no mesmo verso (EXTUDO = EIS TUDO e MUDO = CALADO), como nos 1ºs versos desta leitura (em relação à 1ª possibilidade de leitura: crítica – ironia – descaso) , desestrutura-se a intenção pura e simples da crítica , como processo irreversível e imutável . A colocação do ponto também nos leva a entender que , neste momento e neste espaço temporal – TUDO ESTÁ CALADO.

O poema prossegue , há possibilidade de mudança (REFORMULAÇÃO) .

 

A seguir, paira no ar uma certa nostalgia , uma certa dúvida (depois de tudo, tudo…) – marcadas pelas repetição da palavra tudo e das reticências , que indicam  uma certa hesitação , o que irá confirmar –se no verso seguinte : depois de tudo , tudo… “MUDAR AGORA ?” , o uso do ponto de interrogação ratifica as idéias  citadas  e indica que o poeta está em plena reflexão sobre uma possível  mudança .

No último verso “MUDAR (EI) (IA) ?!, ainda permanecem  a  dúvida (?) e a surpresa(!). O emprego da combinação do ponto  de interrogação  com o ponto de exclamação atesta  possibilidade desta leitura juntamente com  a presença  das três formas verbais – MUDAR/ MUDAREI/ MUDARIA.

 

 

* Dentro desta mesma proposta, apresentamos mais uma leitura possível. 

             MUDEI TUDO.

               (QUIS MUDAR TUDO) .

              AGORA (A)PÓS TUDO ,

              EXTUDO MUDO .

 

“MUDEI TUDO ,” – O passado (“impositivo”) e o ponto  dão-nos a idéia da concretização de uma atitude voltada para um passado , onde o poeta  e a poesia concretista se auto- afirmam.

 No 2º verso, (QUIS MUDAR TUDO) – o desejo de mudança mostra-se  pelo verbo “querer’’,  transformando o tom impositivo de 1º verso em vontade  (QUIS MUDAR TUDO)  – diametralmente  oposta a (MUDEI TUDO).

Este verso está isolado dos  demais por parênteses, isto nos leva  à idéia de explicação, quase uma confissão. 

“AGORA (A) PÓS TUDO , / EXTUDO MUDO. – Neste momento e depois de tudo  (ou depois de Pós-Modernismo, Após tudo)  -EIS TUDO MUDADO/ ESTUDO CALADO. Estas  duas formas de leitura, simultaneamente  no mesmo verso, unem CRÍTICA  ( EIS TUDO CALADO) e REFLEXÃO (ESTUDO CALADO).

 

(Autoria: SÔNIA MOURA)

 

POEMA PÓS-TUDO de AUGUSTO DE CAMPOS – parte III

POEMA PÓS-TUDO de AUGUSTO DE CAMPOS – parte III

(Autoria: Sônia Moura)

 

 Modernismo x Pós – Moderno  

Modernismo x Pós – Moderno 

            Enquanto os modernistas eram a imagem da EXALTAÇÃO, os pós – modernos são a própria EXAUSTÃO.

          A arte Moderna tem total liberdade criadora, é inovadora; a arte Pós – Moderna tem isto e muito mais, por esta razão foi ”batizada” como ANTIARTE. A primeira caracteriza-se pela INTERPRETAÇÃO; a segunda, pela APRESENTAÇÃO.

         Antes, o Modernismo hermético afasta inicialmente o público; agora, o Pós –Moderno pasticheiro convida o público a participar desta apatia, convida-o a sentar-se na cadeira de balanço.

         O Modernismo precisa de afirmação para os seus conceitos e para a sua arte, o Pós-Moderno não quer auto – afirmar – se ou afirmar nada e ele nada – tudo  quer; todos são bem – vindos, esta é a ordem da desordem.

         A fantasia, o exagero, o humor sempre são boas companhias para o artista Pós – Moderno, que é um seduzido; o artista Moderno tinha pretensão de sedutor.

         O poeta Moderno queria a linguagem do cotidiano, o Pós-Moderno é a linguagem coloquial, cotidiana ou, até mesmo, clássica.

         Os modernistas entrincheirados bradam, levantam bandeiras, escandalizam, cutucam a consciência, se aprofundam no inconsciente; os pós-modernos não gritam, não carregam sequer pequenas flâmulas, não escandalizam nem se escandalizam.

 

II– DE CORPO INTEIRO (Um Depoimento)

         Foram muitas as bandeiras-revistas, bandeiras-manifestos, bandeiras-vanguardas. Foram muitos os clamores de vozes sábias, lógicas, ilógicas, ensandecidas, revoltadas, traduzidas em prosa e em verso, marcadas pelo desejo de mudança ou de retomada de valores.

         Pouco a pouco, as vozes se calaram. Açoitadas pelo vento do desencanto, rasgaram-se as bandeiras, desbotaram-se as suas cores, mutilaram-se os seus símbolos. Acabou a passeata. Vieram a desilusão e a angústia.

         Houve uma época que o tempo passava lento e o mundo veloz; hoje, o mundo passa veloz (passa?), e o tempo também. E assim prosseguiremos: “caminhando contra o vento sem lenço nem documento”.[1]

         A política, o saber, a cultura –  tudo mais é manipulado pela égide perpétua do poder. A força do poder vai minando resistências, tornando quase perdidas algumas batalhas travadas (sempre fica alguma vitória), destruindo intenções, bloqueando vontades e envelhecendo novidades. Surge daí o desencanto, gerando a apatia coletiva que leva ao isolamento e se transborda em arte, transparece sem formas ou rótulos.

        Os moldes não existem, porque não existe mais referencial; não existe mais luta, porque não existem mais motivações. Instala-se o caos ideológico. Então, por que e para que lutar?

          A vida agora é um poema de pés quebrados. Apoiados em muletas, desalentados, os novos artistas não querem a guerra e nem pensam na paz.

           O que posso fazer? pensa o poeta e descobre que só há um caminho – desnudar-se através de sua arte.

           Para que buscar neuroses? Não faço planos, não apresento propostas, não sou humilde, nem corajoso – SOU FRAGMENTOS – e assim, sou um objeto em exposição pelo que escrevo.

            Quem conseguir juntar as pedras deste mosaico, dividirá comigo o banquete da minha arte.

              Sou o resultado da descrença do homem em relação aos valores existentes. Sou o resultado das lutas inglórias.

             Cansado, desiludido, surge um homem que não tem vontade de continuar em blocos; e assim; o homem dissolve-se em fragmentos;

            Sendo individual, o homem vive a ilusão do consumismo coletivo.

TODOS usam as mesmas marcas de roupas, sapatos, carros, bebidas; a mesma versão das notícias é assimilada por quantos estiverem ligados naquela emissora; TODOS têm a mesma febre de consumo; TODOS dançam e cantam a mesma música.

            O resultado é um homem feito de cacos. Um fragmento deste homem brilha, reluz, se ama, quer prazer; o outro fragmento é simples marionete nas mãos da tecnociência. Assim, o homem deixou de tomar posições, deixou o foguete Moderno do “OU” e sentou-se na cadeira de balanço do Pós-Moderno “E”.

           A imagem e o som da televisão vendem televisão, cigarros, casas, esperança, amor, sonhos – Vendem TUDO.

            O homem pós-modernos não quer brigar ou contestar. Se ou quando não concorda, agrupa-se em pequenas entidades e dentro de sua comunidade, tenta resolver TUDO.

             TODOS sabem (fragmentariamente) de TUDO e sobre TUDO.

             TODAS as artes riem de TUDO.

             Religião, história, filosofia, consciência social, o homem pós-moderno deixou à parte isto TUDO.

             TODOS compram TUDO.

             Vale o presente, o passado, o futuro (na arte), na vida; só vale o presente que é TUDO.

             A sátira, o pastiche e a (des)esperança, isto é TUDO.

             A simulação (valorização da imagem no lugar do objeto) nem pensa estar levando vantagem em TUDO.

             o “DES” é o deus de TUDO.

             Eu sou PÓS-MODERNO – eis TUDO.

(Autoria: SÔNIA MOURA)

 Modernismo x Pós – Moderno

[1] Caetano Veloso  ALEGRIA, ALEGRIA

 

POEMA PÓS-TUDO de AUGUSTO DE CAMPOS – parte II(

 

POEMA PÓS-TUDO de AUGUSTO DE CAMPOS – parte II(Autoria: Sônia Moura)

 

1 – CONCRETISMO –  breve relato     POEMA PÓSTUDO de AUGUSTO DE CAMPOS

             O concretismo teve a intenção de criar um poema que fosse OBJETO/MENSAGEM, inscrito no contexto da vivência das transformações da época.

              Os poemas eram apresentados dentro de estruturas próprias e visuais com formas de geometrização, formas estas antagônicas aos recursos poéticos tradicionais de então, ou seja, a velha estrutura sintático-discursiva do verso.

              Foi um movimento poético com posição vitalizante, sua poesia tem criação conteudística e de forte impacto visual.

              Este movimento vanguardista tem sua apresentação oficial em 1956 – I EXPOSIÇÃO DE ARTE CONCRETA e, em 1958, com a publicação do “PLANO-PILOTO PARA A POESIA CONCRETA”, na edição da revista NOIGRANDES (segundo Augusto de Campos, NOIGRANDES significa “antídoto contra o tédio”), em que se divulga a teoria do movimento.

               Mas a expressão Poesia Concreta já aparece em um artigo de Augusto de campos, em 1955, na revista FORUM (pág. 243 – MAI).

              Seus autores de maior destaque são Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari (iniciadores do movimento) José Lino Grünewald, Ronaldo Zeredo, José Paulo Paes, Edgar Braga e Pedro Xisto.

              O Concretismo pretende mostrar, de modo radical e inovador, a diferença entre poesia e prosa.

               Fazendo uso de uma comunicação de impacto, de percepção imediata, seguindo os passos da publicidade e das artes gráficas, afasta do poema a unidade poética linear –  o verso -, o subjetivismo de expressão ou de representação, qualquer forma de mistérios, conotações semânticas e uso de símbolos.

               Propõe uma poesia sintática, objetiva, que represente por si mesma a mensagem sem relações com nada exterior a ela.

                A poesia concreta é ousada (agregando significâncias), é visual (desarticulação do verso ortodoxo), é fragmentação (para uma representação), é vivenciada (estrutura ótico-sonora). 

 O poema concretista é projetado no branco da folha (espaço), numa relação visual significativa com os caracteres tipográficos dos signos e também troca o suporte tradicional (verso, estrofe, metro, rima), por uma sintaxe espaço-temporal, o que vai impedir uma leitura linear e permitir a visualização dos conteúdos e uma unidade espaço-temporal com significações verbais (verbi), musicais (voco) e plásticas (visual), gerando a unidade VERBIVOCOVISUAL, em que as palavras se organizam em constelação pelo uso de sintaxe analógica e pela aproximação de palavras, em geral sonora e visualmente semelhantes, desaparecem as relações lineares, estabelecidas pelos conectivos gramaticais, gerando a correspondência SEMÂNTICO-SONORO-GRÁFICA.(AUTORIA: SÔNIA MOURA)

POEMA PÓS-TUDO de AUGUSTO DE CAMPOS – PARTE I

 PÓS-TUDO de AUGUSTO DE CAMPOS

POEMA PÓS-TUDO de AUGUSTO DE CAMPOS – parte I

(Autoria: Sônia Moura)

             Há diversas possibilidades de leituras para todo tipo de texto, são os elementos propagados e defendidos pela Teoria da Recepção como: a pré- disposição, a aceitação ou a rejeição.

Partindo desta premissa, será a visão do leitor que indicará cada talho do poema “PÓS-TUDO” de AUGUSTO DE CAMPOS, indicando que a base concretista e a estrutura formal deste poema não nos aprisiona a lê-lo e a vê-lo somente como uma forma de exaltação ao movimento concretista ou de repúdio ao Pós- Modernismo.

O poema poderá ser, entre outras possíveis leituras, a confissão do poeta concretista que reconhece e aceita a nova poesia Pós-Moderna;deste modo, CONCRETISMO e PÓS-MODERNISMO se intertextualizarão neste poema.

Para atingirmos nosso objetivo, partiremos de alguns pressupostos teóricos que cercam o MODERNISMO – CONCRETISMO e o PÓS-MODERNISMO.

Em seguida, faremos uma apresentação de “algumas leituras possíveis do texto “, demonstrando, através de análises (semânticas, fonéticas, morfológicas e sintáticas) que as relações, associações e dissociações apontadas nos permitem ver no poema (dependendo da leitura que se faça): a crítica , a ironia, o descaso, a reflexão, a reformulação, a aceitação ou, até, a junção de alguns deles numa mesma leitura.

            A arte Moderna provoca, de saída, uma contemplação fria, intelectual, distante; a arte Pós-Moderna é quente, o artista é que tem a “cabeça fria”.

            As VANGUARDAS modernistas têm seu grito de guerra nos Manifestos. Estes deixavam passar as emoções e as idéias modernistas que pareciam dizer: “ nós conduziremos vocês “ (leitores, espectadores, ouvintes); os pós-modernistas fazem da arte uma grande brincadeira, uma ironia, formam a roda e dizem; “quem quiser pode chegar“.

            A Literatura Modernista está carregada de mensagens propondo mudanças sociais, carregada de protestos, faz crítica ao mundo. O autor pós-moderno não quer ser mensageiro de nada, não quer protestar contra nada, não questiona passado ou presente; apenas convive, e a ausência de futuro incita o resgate do passado.

            O Moderno, por sua hermeticidade, foi “arte de elite“; o Pós-Moderno deixa-se cativar por elite e massa.

            O texto modernista, embora possa ser zombeteiro ou irônico (uso da paródia) – ainda assim é sério, porque traz com ele a crítica; Pós-moderno é descontraído, não consegue e nem quer a seriedade que anda por aí; por isso, prefere brincar, fazer pastiche.

            O Modernismo teve sua fase heróica – 1922 a 1930 -, sua fase construtiva, sua fase de reflexão – 1945 a 1950 – e, por fim, a partir de 1950, novas tendências na poesia são o destaque: Concretismo, Neo-Concretismo, Práxis e o Poema-Processo; o Pós-Modernismo não tem fase ou divisões, ele é PLURAL.

 (Autoria: SÔNIA MOURA)

MÁSCARAS NEGRAS – Fundamentações e Significações

 MÁSCARAS NEGRAS - Fundamentações e Significações

MÁSCARAS NEGRAS  Fundamentações e Significações

(Autoria: SÔNIA MOURA)

           As artes africanas apreenderam plenamente o significado mais profundo das máscaras ao fazerem destas um instrumento que desenha a trajetória do homem do nascimento à morte. Uma de suas artes, a máscara não traduz a emoção do indivíduo, porém, ao buscar através dela a constância das emoções e sua universalidade, o particular passa a ser  compreendido e superado, e, desaparece para dar lugar ao universal, pois, por sua natureza, a máscara apresenta ligações com necessidades psicológicas básicas, comuns a todos nós.

              O elemento motivador mágico-religioso das máscaras está ligado às necessidades da vida cotidiana, mas nas artes e nos usos africanos, a máscara  serve, especialmente, para permitir ao homem conviver com a multiplicidade da vida e para que ele possa criar novas realidades, desta forma  poderá ser  homem, espírito, bom, mau, animal, divindade. Dar  voz a metamorfoses simbólicas,  este é o poder transfigurador da máscara.

              Ligado às forças misteriosas, o uso ou o culto das máscaras para os povos africanos propicia a capacidade de modificar a realidade e a evolução humana, penetrando no mundo sagrado de seus antepassados (humanos ou animais) e conectando-se com eles, transformando o mundo complexo e hostil em um mundo menos hostil.

              A máscara permite a participação e a exploração, quando une a comunidade inteira como um único corpo em torno dela, quando da sua representação o grupo “fala” a mesma língua simbólica e complexa, que só pode ser interpretada por iniciados.

              Para o africano a máscara é toda a indumentária, portanto pode ser um pingente com o rosto de um antepassado ou para proteção, pode ser apenas um acessório para ser mostrado em reuniões de iniciados, pode ser vestida, colocada sobre o rosto, como capacete ou como “amuleto”. Unindo máscara, dança e ritmo, o africano representa na máscara a essência do universo, o ponto mágico de contato e de participação do homem com a natureza, ao dar a mesma além da forma, movimento e ritmo.

 

É assim que se faz  (ou melhor …se fazia)

          A arte étnica das máscaras africanas tem por princípio básico a estética, é, sobretudo forma de expressão, vem de dentro para fora do indivíduo, é “invenção”, “criação” e não mera imitação da natureza, uma vez que é arte mediadora entre os mundos natural e sobrenatural.

Regras preciosas, ritos e atos são observados na feitura das máscaras, já que estas guardam a essência mágica. Para confeccioná-las é preciso ter autorização do chefe religioso da  aldeia, que por seu reconhecido poder político (pode ser chamado “feiticeiro”) e, entre suas funções, está a de “chefe das máscaras”, ele  preside todas as reuniões de ordem ritual em que a máscara aparece e dirige todo o cerimonial.

              Madeira, pedra, marfim, metal, técnicas de fusão de materiais, cinzel e incisão são materiais e técnicas usadas  na criação das máscaras, mas o principal material é a madeira, pois é mais fácil de ser encontrada, porém, nem todo tipo de madeira pode ser usada na confecção da máscara, seja por limitações rituais, seja por qualidades negativas atribuídas a certas plantas ou pela qualidade da própria madeira.

              A madeira deve ser fresca, pois a madeira mais velha é mais difícil de ser trabalhada e também pode rachar ao secar, tornando-se inútil para o entalhe. Ao encontrar a madeira adequada à criação da máscara, o escultor deverá transportá-la para um lugar isolado e protegido dos olhares indiscretos ou curiosos, fazer alguns rituais e ficar em uma certa forma  de  “isolamento” até concluir sua obra. Os instrumentos que ele utiliza na fabricação da máscara são, por vezes, construídos por ele mesmo, uma vez que estes são considerados objetos de caráter sagrado, e em alguns casos a eles são ofertados sacrifícios.

              À noite, o escultor (que pode desempenhar outra atividade – por exemplo – a de agricultor) volta à aldeia, esconde, junto ao chefe das máscaras, sua obra inacabada ou o seu modelo e, ao alvorecer, volta ao seu refúgio.

              Após o entalhe, o escultor usará folhas rugosas, cipós, tiras de pele de animais, areia, pedras ou fragmentos de osso, para lixar a peça; a cor será dada pelo emprego de corantes vegetais obtidos com folhas maceradas, pela imersão na lama ou pelo escurecimento a fogo. O lado decorativo aparece pelo acréscimo de materiais heterogêneos como dentes, chifres, pêlos, conchas, fibras vegetais, espelhos, miçangas, sementes, pedaços de metal e faixas de tecidos. A decoração é muito importante pois intensifica de modo dramático a expressividade  e o profundo sentimento mágico e sagrado ,  intrínseco ao objeto.

              Ao finalizar a feitura da máscara, o proprietário ou o chefe das máscaras deverá conservá-la em lugar seguro e protegido (às vezes, quem desempenha o papel de guardião é o próprio artista), e a máscara só sairá deste local para os devidos usos.

              Quando o dono da máscara morre, ela passa para um herdeiro (fica em família) ou passa para um sucessor da mesma sociedade secreta e, quando uma máscara perde o seu poder, ela deve ser substituída, porque não pode mais ser utilizada. Cabe ao artista (escultor) submeter-se ao rito de purificação, conseguir o material adequado, enfim, cumprir todo o ritual de feitura da nova máscara.  Uma breve cerimônia deverá marcar a passagem do espírito da máscara velha para a nova e sua primeira aparição em público deverá ser festejada e os presentes lhe oferecerão donativos e reconhecerão seus valores, inclusive os estéticos.

                Se é um privilégio ser o portador de uma máscara, também designa a este obrigações e sanções, pois seu prestígio conferirá à máscara o mesmo prestígio, podendo aumentar ou diminuir – lhe o valor. A diminuição do valor poderá levar à destruição da máscara, pois esta perde o seu valor ritual e o mesmo acontece à máscara danificada. No entanto, o tempo e a idade são elementos que lhe dão maior força sagrada, pois esta foi herdada pelas diversas gerações, que lhe transmitiram o que tinham de melhor.

              O mesmo vale para o artista, quando não é autodidata deve fazer seu aprendizado com um artista reconhecido, isto “aumenta” o valor de sua obra. Sua liberdade de invenção é limitada, pois deve seguir os princípios básicos impostos pelas tradições.

 Esta forma de  criação   coloca o artista  em contato com forças sobrenaturais, este contato confere riscos a esta posição, mesmo assim o escultor se sente um eleito e tem  muito orgulho do seu trabalho artístico. Ele desfruta de uma posição privilegiada, mas provoca certo temor, por usa capacidade de criar formas que têm ligação com o sagrado e com qualidades sagradas, ou seja, cria instrumentos de poder.

              A arte africana sempre teve uma função eminentemente social, era entendida como um meio de ensinamento e motivação de existência cotidiana e metafísica do homem, explicando o sentido da vida e indicando a posição correta dentro do grupo, assim, em manifestações artísticas: iniciações, atos da sociedade secreta, ritos fúnebres e agrícolas, cerimônias públicas, as máscaras eram a síntese da arte e da narração dialógica entre o homem e o mundo visível e invisível. 

 

[Apresentação – UFF – 2005]

MÁSCARAS NEGRAS - Fundamentações e Significações

FACETAS DINÂMICAS: globalização e cultura [Parte II]

 FACETAS DINÂMICAS: globalização e cultura [Parte II]

 

1   FACETAS DINÂMICAS:  globalização e cultura   [Parte II]

                           (Autoria: SÔNIA MOURA)

 

1.2. O TODO  – a cultura

 

Se pensarmos a cultura como “Um todo que guarda a base formadora de um grupo…” (TAYLOR), ou se pensarmos como “Um conjunto de sistemas simbólicos…” (LÉVI-STRAUSS),ou como “Sistemas entrelaçados de signos interpretáveis…” (GEERTZ), ou  como “Uma síntese de estabilidade e mudança, de passado e presente…” (SAHLINS), ou como “A bússola de uma sociedade, sem a qual seus membros não saberiam de onde vêm, nem como deveriam se comportar” (WARNIER) ou como “Uma coisa do mundo real, uma vivência possível, um sonho concreto, é o país se pensando dentro do mundo” (JABOR), vamos perceber que as palavras embasadoras destas definições (grupo, sistemas, síntese, bússola, sociedade, membros, país, mundo), guardam em si a idéia do todo, uma vez que, em qualquer definição,  a cultura pertence a todos.

Se, na origem, a palavra cultura nasce de “colere” significando cultivar, habitar, criar e preservar, e, se, na atualidade, os cientistas sociais atribuem significações à cultura e às suas ações, como por exemplo: cultura como modo de vida de um povo, podemos alargar estas significações dentro  do todo social, como componentes basais do que se entende como cultura: a  estrutura social  no campo das idéias, dos símbolos, das crenças, dos costumes, dos valores, das artes, das linguagens, da moral, do direito, das leis, porque a  cultura é a representação do modo de pensar e agir de um grupo, de um todo. A cultura é o todo; é o modo de vida que nasce do todo de todos, logo, deve ser para todos.

Colocando-se lado a lado  os conceitos de identidade cultural, o que  propõe como base a origem comum, a língua, a religião, a psicologia coletiva, o território… (concepção objetivista) e o  conceito ligado às questões de sentimento, pertencimento ou a representações simbólicas (concepção subjetivista),  vamos perceber quão complexos são os processos de construção das identidades, em um mundo que se debate entre o global e o local. É o atual embate de todos.

Como o todo que abarca todos os conceitos e deles pode desfrutar, sem parcimônia,  os muitos sentidos, a cultura encontra-se presa ao espaço mediático e quanto mais se multiplicam estes conceitos e quanto mais a cultura é multiplicada por estes caminhos globais, mais a cultura  se emaranha na “democrática” teia global, que se coloca e nos coloca sob a égide da homogeneidade cultural e como dinamizadora da igualdade, da diversidade, do multiculturalismo, do pluralismo cultural. Trava-se assim o conflito entre a objetividade e a subjetividade, entre  o âmbito político e o âmbito ideológico, entre o bem cultural e o produto cultural, criando uma falsa imagem de uma   multiplicidade cultural tão ímpar, que, de fato, provoca o apagamento da hegemonia, da uniformidade, o que poderia riscar do mapa a verdadeira heterogeneidade cultural.

A cultura como tradição advém histórica e geograficamente de uma sociedade, uma vez que não existe sociedade que não tenha a sua própria cultura e é neste revirar-se, revoltar-se, reviver-se, revolver-se e recomeçar(-se)  que a cultura se espraia no seu meio social, é por este caminho que ela se refaz no todo: em todas as épocas, em todas as camadas sociais, em todo território local, nacional, global.

A globalização econômica afasta a cultura, transforma sua imagem local, cria um universo ilusório, domina e impõe códigos lingüísticos, traça analogias inexistentes, assim o indivíduo, levado pela exaltação meramente artificial e superficial da visão, converte  em verossímil uma cultura que não é sua  (ou não era?) como se fosse a verdadeira; ele codifica, decodifica e recodifica símbolos, passando a reconhecer um outro mundo feito de simulacros culturais, a reconhecer, como seus, núcleos culturais pertencentes a outro grupo social.

As metáforas da visão, espalhadas pela mídia global, mostram a ausência de limites espaciais e temporais, fazem o olhar bailar  entre a objetividade e a subjetividade, expõem expressões visuais que sugerem encontros perfeitos entre o global e o local, ampliam a imagem de uma realidade dividida, multiplicada, subtraída, somada, juntam a ideologia, a estética e a ética (?) como alicerces para o mundo contemporâneo cultural e economicamente globalizado.

Paradigmas colocados lado a lado misturam o imaginário, o imaginado, o real e o simbólico e, através da fusão de suas forças,  apontam suas câmaras – o olhar dirigente e central – e correm para seduzir o olhar da periferia – o olhar dirigido e marginal –  assim as imagens habilmente planejadas e projetadas passam a ser vistas (mesmo que nasça a dúvida) como produto do espírito, da mente, da ilusão, da palavra, ou seja, como forma de expressão cultural legítima de cada grupo, mesmo que este grupo agora esteja transformado no tudo global, hegemônico.

Nos primeiros momentos, o resultado das imagens de culturas indecisas  e cheias de generalidades vagas afastam da visão o plano da inteligibilidade desta  nova cultura, deste novo  real, que transborda  em formas, formatos, cores, ritmos e movimentos espetaculares, no entanto, toques simbólicos atávicos podem teimar em mostrar as velhas verdades, assim, em vez de a cultura simplesmente se dissipar, se esgarçar, seus membros tendem a reagir e a recompô-la, mesmo que de formas esquematicamente alegóricas.

Nesta densa e apertada rede metafórica, são criadas sugestivas translações de significados culturais, que se cruzam em planos identificatórios de ação, representação, relação e orientação levando a interação de um ser e de seu grupo, mesmo sendo a sociedade e o homem atual frutos da globalização econômica e cultural que há muito se instalou no mundo.

As culturas e sua melhor representação – as línguas – sofrem transformações ao longo da história de cada povo, desta maneira, a organização cultural dos grupos sociais também se modifica. Língua e cultura mantêm estreitas ligações e estreitas relações, são parceiras na formação e definição das identidades, até porque é através da língua que as comunidades expressam sentimentos, definem pertencimentos, se reconhecem. Para complementar estas afirmativas, observemos a definição de Jean- Pierre Warnier:

“A identidade é definida como o conjunto dos repertórios de ação, de língua e de cultura que permitem a uma pessoa reconhecer sua vinculação a certo grupo social e identificar-se com ele”. (WARNIER, 2000: 16-17)

A cultura é complexa, feita de  normas, hábitos, costumes, tradição[1] e são exatamente estes elementos que fazem com que cada cultura seja singular, mesmo que  estejamos vivendo um momento plural. Além destes e de outros fatores, devemos destacar a indústria como  elemento partícipe da construção cultural,  quando serve como modificadora ou multiplicadora de comportamentos ou quando reproduz bens culturais (imagens, palavras, música) através das produções cinematográficas, fonográficas ou por produções eletrônicas, que dentro de alguns critérios estabelecidos permeiam o campo da indústrias culturais. Atento a este problema, Warnier diz:

 

“As culturas sempre estiveram em contato e em relação de troca umas com as outras. Mas uma situação histórica totalmente nova apareceu a partir do momento em que as revoluções industriais sucessivas dotaram os países chamados de “desenvolvidos” de máquinas para fabricar produtos culturais e de meios de difusão de grande potência. Estes países podem, agora, jogar no mundo inteiro, em massa, os elementos de sua própria  cultura cujo  regime é novo, sui generis. Como analisá-la?” (WARNIER, 2000: 26)

 

Assim sendo, os bens culturais, diferentemente dos produtos culturais, quase sempre estão excluídos do mercado, embora se possa atribuir-lhes valor de troca, pois é sabido que o mercado obedece cada vez mais à lógica econômica:

 

“A distinção primordial que deve ser feita entre produto cultural e bem cultural, é que a este está vinculada a noção de um patrimônio pessoal ou coletivo e designa, em princípio, por seu valor simbólico, algo infungível, isto é, algo que não poderia ser trocado por moeda. Já os produtos culturais são aqueles que expressam idéias, valores, atitudes e criatividade artística e que oferecem entretenimento, informação ou análise sobre o presente, o passado (historiografia) ou o futuro (prospectiva, cálculo de probalidade, intuição), quer tenham origem popular (artesanato), quer se tratem de produtos massivos (discos de música popular, jornais, histórias em quadrinhos), quer circulem por público mais limitado (livros de poesia, discos e CDs de música erudita, pinturas). Embora desta definição participem conceitos vagos, como “idéias” e “criatividade artística”, ela exprime um consenso sobre a natureza dos produtos culturais.” (TEIXEIRA COELHO, 1999: 318)

 

Será que a magia da globalização conseguirá apagar as velhas experiências culturais, fazendo com que as experiências particulares  se anulem? Estarão todos os produtos culturais / bens culturais e todas as experiências  fadados a serem convertidos em mercadoria? Uma vez que, atualmente, quase toda obra cultural que não esteja inserida nas leis do mercado,  que não venha a contribuir para o crescimento do mercado, será imediatamente descartada, eliminada, tornar-se-á um produto supérfluo; assim como o receptor de cultura é visto tão-somente como consumidor cultural.

A história e a literatura nos mostram que, quando necessário, somos capazes de criar,  adaptar formas que permitem a conservação de  velhos costumes. As festas  populares brasileiras[2], por exemplo, são a prova de que criamos novas condições para reformarmos velhos modelos, acrescentamos mitos, revestimos suas imagens, reformamos os ritos e  a sua construção simbólico – cultural não morre ou, pelo menos, luta para não morrer,  mesmo que o produto cultural se torne mercadoria, como explicitam Horkheimer /Adorno:

 

“A cultura é uma mercadoria paradoxal. Ela está tão completamente submetida à lei de troca que não é mais trocada. Ela se confunde tão cegamente com o uso que não se pode mais usá-la. É por isso que ela se funde com a publicidade. Quanto mais destituída de sentido esta parece ser no regime do monopólio, mais todo – poderosa ela se torna. Os motivos são marcadamente econômicos. Quanto maior é a certeza de que se poderia viver sem toda essa indústria cultural, maior a saturação e a apatia que ela não pode deixar de produzir entre os consumidores. Por si só ela não consegue fazer muito contra essa tendência. A publicidade é seu elixir da vida.” (HORKHEIMER/ ADORNO, 1985, p.15)

 

É relevante destacar que Adorno/Horkheimer mostram o duplo palimpsesto de elementos fundamentais no âmbito de uma ação cultural – a troca e o uso – que se apresentam destituídos de  suas funções primordiais, dando lugar  mágico à publicidade, a qual garantirá a “sobrevivência” da cultura.

A “lógica” do mercado, as novidades tecnológicas, os processos acelerados da comunicação e da informação e o papel privilegiado da mídia, mais do que nunca, interferem tanto na produção cultural quanto na circulação dos produtos culturais. Segundo as leis do mercado, são eles que garantem a sedução do público, a poderosa e devastadora circulação global, as diversas formas de retorno, afastam a concorrência e  garantem o  paroxismo do lucro.

Considerando que a cultura é o alicerce de nossa identidade, ter acesso a produtos culturais e a bens culturais deveria ser direito de todo cidadão,  porém, o conjunto dos elementos interferentes na produção e circulação dos produtos culturais segregam os que não podem “consumir” cultura. É outro paradoxo da cultura enquanto mercadoria.

Se entendemos a cultura como bem de todos e para todos, entendemos que ela não pode estar/ficar limitada pelo mundo fugaz da mídia e do mundo guloso do mercado, uma vez que,  por si só a cultura já dispensa o supérfluo. Cultura é um todo para todos, para que esta afirmativa salte do plano ideal para o plano real, fazem-se necessárias políticas culturais consistentes, eficazes, embora seja duro   o embate entre os interesses do povo e  os interesses do mundo de economia globalizada, como podemos observar neste fragmento de Pierre Bourdieu:

 

“Os campos de produção cultural, instituídos apenas muito progressivamente e ao preço de imensos sacrifícios, são profundamente vulneráveis diante das forças da tecnologia aliadas às forças da economia; com efeito, aqueles que, no seio de cada um deles, são capazes, como hoje em dia os intelectuais midiáticos e outros produtores de best-sellers, de se contentar em se dobrar às exigências da demanda e daí extrair os lucros econômicos e simbólicos, são sempre, como por definição, mais numerosos e mais influentes temporalmente do que aqueles que trabalham sem fazer a menor concessão a uma forma qualquer de demanda, isto é, para um mercado que não existe.” (BOURDIEU, 2001: 91)

 

Atualmente, o lucro precisa vir rápido, precisa ser máximo no mínimo de tempo possível, assim, a mídia corre contra o tempo e vence o tempo quando nos convence de que precisamos consumir cultura, quando provoca em nós um desejo incontrolável de consumir cultura, não cultuar a cultura, só consumir, consumir. Participar de um grande evento, como o Rock’n Rio ou ir visitar uma mega exposição como a dos pintores espanhóis (mesmo que eu não saiba muito bem o que estou fazendo) é garantia de estatuto, quando digo a todos:  EU FUI!, eu digo também: sou consumidor, faço parte do mundo.

A cultura se firma pela repetição, pela rotina, pelo rito,  pelo mito, pelo reconhecimento. São estas as mesmas “armas” que a mídia globalizada da tecnologia comunicacional emprega para nos seduzir e convencer. Os  slogans, a música,  as imagens, os boatos, as roupas, os atores, os  autores compõem este quadro para o qual o olhar, submetido a múltiplas associações, se volta.

O olhar e o desejo se projetam no espaço global e, ante o contínuo desvelamento das imagens ideais transvestidas de realidade (que somente o vestígio da memória atávica e as recorrências simbólicas conseguirão decifrar), o espectador desvela imagens prenhas de vibrações, de movimentos intensos, de significações abstratas e ouve a voz de uma linguagem capaz de remetê-lo a um mundo cheio de imagens artesanais, técnicas, digitalizadas, computadorizadas, fotografadas, filmadas que irão- se revelar,  e, mesmo que ele tente se  manter à margem deste excessivo aprisionamento, as imagens e os sons  o  afastarão  do real, tecendo o perigo de ele cair na armadilha que  mostra o invisível. Mesmo  quando o espectador/consumidor procura desviar o foco do seu olhar, em busca de sua cultura, a mídia estará lá para convencê-lo a olhar somente numa direção, num ponto fixo num infinito global.

Neste mundo dos espetáculos globalizados, apenas conceitualmente a cultura continua “livre”. Hoje, a cultura é  vista e produzida como  mercadoria, por isto  confundimos tudo e o mercado confunde a todos que se vêem dentro do mesmo fosso ou do mesmo poço, do mesmo todo. Então, o todo cultural local  dissolve-se e converte-se numa pasta homogênea, para que se molde o  todo cultural global, a partir daí tudo é representação. Podemos, pelas palavras de Debord, ratificar estas posições:

 

“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se representação”. (DEBORD 1997:13)

 

(Trabalho apresentado – UFF- 2002)

 



[1] Há muitas definições sobre a tradição como componente cultural, destaco a observação de Warnier por considerá-la cabal (…) De fato, a tradição, pela qual se transmite a cultura, impregna desde a infância o nosso corpo e a nossa alma, de maneira idelével. (WARNIER, 2000: 17)

[2] (…) O senhor bem sabe que as cavalhadas não são mais do que uma imagem, um simulacro das antigas justas e torneios. Mas esses divertimentos bárbaros, em que se derramava sangue, e que muitas vezes custavam a vida aos justadores, não podem compadecer-se com as luzes e os costumes da civilização atual, e admira que, mesmo nos sanguinários tempos da média idade, fossem tolerados entre povos cristãos. A cavalhada, porém, ficou como uma imitação daquelas lutas cavalheirescas que, não custando o sangue nem a vida a ninguém, oferece um brilhante e nobre espetáculo aos olhos do povo. ( Bernardo Guimarães – O Garimpeiro, s/d: 32 – Ediouro) .

FACETAS DINÂMICAS: globalização e cultura

 

 FACETAS DINÂMICAS: globalização e cultura

1   FACETAS DINÂMICAS:  globalização e cultura   [Parte I] –  (Autoria: SÔNIA MOURA)

                       

 1.1      O TUDO – a globalização

         O fenômeno denominado globalização espraia-se no mundo contemporâneo, ora como ondas leves que vêm-se banhar na areia de qualquer praia ou como ondas rebeldes de um maremoto ou mesmo nascidas de um furacão e  que podem chegar a vários lugares destruindo tudo ou quase tudo: cultura, hábitos, costumes.

O discurso contemporâneo consagra e legitima a nova ordem hegemônica por meio da onipresença, onisciência e a onipotência econômica, colocando a globalização no centro do mundo e como o centro deste, para onde tudo e todos deverão convergir. O núcleo deste “novo” sistema afasta para a periferia a autonomia, a independência e a diferença cultural, desnorteando as forças identitárias ou forçando-as a lutas constantes para que sobrevivam. Atentemos para a colocação de José Luís Jobim:

“No contexto discursivo em que  se pretende legitimar uma nova ordem, talvez seja o caso de colocar em questão qual é o centro  desta nova ordem – em relação ao qual  se constitui a “periferia”. Isto porque o discurso da globalização freqüentemente apresenta  pretensões ao absoluto, ao ilimitado, irrestrito e universal.” (JOBIM, 2002: 35).

O conceito de centro e periferia está preso à questão espacial, e a globalização é um fenômeno predominantemente espacial. Deste modo, partindo da invasão e superposição dos espaços, tudo e todos se voltam para a mesma direção.

A globalização é o sol em torno do qual tudo e todos devem gravitar, depender da sua luz e do seu calor, então, ao invés de todo mundo se  iluminar com os saberes e fazeres alheios, com outros modos de ter e de ser, tudo torna-se pastosamente igual e, pelas leves ondas tecnológicas da comunicação global, a cultura dominante se esparrama, invade praias alheias, invade o espaço alheio, e de acordo com os interesses, particularmente os econômicos, esta pode modificar ou mesmo eliminar outras culturas.

Como os indivíduos, as culturas também vivem em tempos e em espaços diversos e historicamente diferenciados, Novalis diz que “tempo é espaço interior, espaço é tempo exterior”, logo, percebe-se que tempo e espaço deveriam estar  sempre e indubitavelmente entrelaçados. Porém, a sedutora globalização  aparece como elemento desagregador desta dupla dinâmica, ao privilegiar o espaço e diluir  o tempo em muitos tempos a um só tempo. E é através do espaço dissolvido, uniformizado, artificializado e desterritorializado  que a globalização propaga seus aspectos positivos e “anula” os aspectos negativos.

Guy Debord faz a seguinte afirmação: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se representação.”. (DEBORD, 1997: 13). Ao assegurar que a vida real é vivida através da imagem e do ilusório – ampliado, multiplicado, reproduzido, cuidadosamente pela mídia – o pensador nos apresenta uma sociedade simplificada, apontando para o nosso papel único de espectadores constantemente expectados, controlados pelos olhos da mídia globalizada, que também controla nossos olhares, deste modo, manipulados por titereteiros hábeis, seguimos arrastando nossas correntes espetacularmente leves, adorando o deus maior da nossa “democracia social”, na qual o espetáculo globalizado é tudo.

É no espetáculo “mitologizado, mitificado, ritualizado”, no sensacional e no simulacro que a sociedade se contempla e se completa, e o global engole fácil a sua presa local. É para ele – o espetáculo – que o olhar do sujeito desamparado se volta à procura de qualquer marca que lhe ofereça algum sinal de pertencimento, de identificação. A mídia faz o espetáculo e a busca do indivíduo no coletivo consagra-se pela completude totalizante das imagens.

O espetáculo substitui a realidade; a imagem é verificada à sombra de uma  realidade da qual “todos participam”. Todo momento é coletivo, plural,  assim as relações humanas transformam- se em imagens espetaculares, onde tudo é perfeito, tudo é espetacularmente global.

No mundo espacialmente globalizado, todos os espaços são preenchidos e o que está em falta é o espaço vazio. Um excesso de preenchimentos do ambiente social, coloca-nos extremamente vulneráveis à sedução dos objetos (o consumo de tudo) e ao seu interminável processo de substituição das emoções.

Pelo mundo da mercadoria, através do espetáculo global, o homem contempla, idealiza, sonha, vivencia uma realidade que parece real; uma realidade forjada pelos “donos da comunicação” que fazem nascer os mitos modernos: deuses e deusas da beleza, do esporte, da arte, da alimentação, do vestuário, das academias (físiculturistas ou intelectuais), da literatura, da própria comunicação, todos canonizados, todos glorificados em nome do tudo chamado globalização.

O tudo multiplica o todo e passamos a ser robôs felizes e uniformizados, tudo é previsível, tudo é determinado, computadorizado, tudo nos leva à sujeição (in)visível do espetáculo da globalização.

Tudo passa a ser representação (a este fenômeno os Situacionistas chamam de espetáculo); cria-se o esvaziamento das expectativas sociais e individuais ao mesmo tempo em que se criam expectativas “reais”, urgentes, criam-se necessidades por meio do espetáculo abstrato/concreto que se instaura no espaço social global , destronando a própria vida social e o mundo real.

A economia mercantil- espetacular promove a junção da produção alienada e do consumo alienado, no momento em que se coloca simbolicamente  o maior produto à venda no mercado: a imagem (imagem é tudo!?), desta forma, acreditamos na simulação  de que não existe hegemonia social, a partir do momento  que, pela construção do imaginário assimilado, o indivíduo submete-se a exigências objetivas e alheias, afastando-se de suas necessidades subjetivas, tornando-se um ser alienado.

Segundo Eric Fromm, o homem leva uma vida alienada quando [1]“não se sente como centro do seu mundo, como o criador de seus próprios atos – já que esses atos e suas conseqüências se tornaram os senhores a quem ele obedece ou mesmo cultua.” A globalização, certamente, colocará esta definição no calabouço, pois para  ela as emoções e percepções individuais devem ser anuladas, desviadas, uma vez que a este indivíduo livre- prisioneiro do seu espetáculo, fica vedada qualquer possibilidade de não se perceber como o centro de (seu) mundo, embora o espaço reservado a este indivíduo seja a periferia. Deste jeito, ao anular-se a cultura local, anula-se o indivíduo que passa a ser o nada, reverenciando o tudo globalizante.

Assim, as culturas dominantes vão-se interpondo nos espaços culturais como as ondas que beijam as areias de todas as praias, e vão-se estabelecendo, vão ficando, vão derrubando os castelos culturais  seculares, pois, para a globalização, eles são apenas castelos de areia. O mercado, derrubadas as fronteiras econômicas e políticas, vende seus produtos universalizados, enquanto, atordoados, hipnotizados,  nos rendemos à nova onda  ou nos revoltamos contra os espetáculos promovidos pelas estruturas econômicas e pelos poderes políticos regidos por uma “minoria próspera[2] que empunha seus controles remotos, trocando e misturando todos os canais, deixando perdida e sem controle a “multidão inquieta”.

Onde e como  vivem a minoria próspera e a multidão inquieta? No mesmo espaço? No mesmo tempo? Stuart Hall nos diz que “Todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos” (HALL, 1999: 71), mas, quando o espaço é invadido e o tempo diluído, como ficam as referências simbólicas? Como nos situamos neste mundo onde tudo é moldado por meio de artifícios destas representações?

São os modelos simbólicos ancorados no passado que promovem a inquietação e expõem à multidão inquieta o duelo entre as imagens culturalmente construídas (passado) e as imagens habilmente forjadas (presente), neste instante, aparece uma enorme fenda, o jogo da globalização falha. É quando a multidão inquieta consegue perceber  o modo como o tudo se articula, como são feitas as “trocas”(ou seriam as imposições?) e em que lugar a cultura é colocada nesta nova/velha plataforma, e, neste instante, a multidão inquieta tenta romper as barreiras, refazendo o entroncamento cultural.

Então, como se fosse um espelho face a outro espelho, experiências, sensibilidade, subjetividade  transpõem-se em textos e propõem  a liberdade, a resistência, a rebeldia, a capacidade de criação e de recriação, da inovação, da conclusão e da (con)fusão, tentando desconstruir o mundo dos simulacros da globalização.

(Trabalho apresentado – UFF- 2002)

FACETAS DINÂMICAS: globalização e cultura



 

[1] FROMM, Eric. The Sane Society, 1955, p.120

 [2] Noam Chomsky – A Minoria Próspera e a Multidão Inquieta – Entrevista a David Barsamian (Ed. UNB, Brasília, 1993). Ressaltamos que os comentários de Chomsky, neste momento, referem-se às estruturas econômicas e políticas do poder, porém, aproveitamos suas idéias, para reafirmarmos os reflexos da globalização econômica, no campo cultural, onde a minoria articulada comanda a multidão inquieta.