O UNICÓRNIO

O UNICÓRNIO (Autoria: Sônia Moura)

Branco como a luz do luar, o unicórnio docemente contemplava a flor azul nascida naquela manhã de primavera. O cheiro que ela desprendia era inebriante e ele se encantara com aquele azul que bordava as pétalas da (re)nascida.

Não queria colhê-la , mas também não queria deixá-la sozinha no meio da floresta, não podia afastar-se dali.

E se um descuidado pisasse aquelas pétalas aveludadas, não poderia deixá-la à mercê da própria sorte.

Havia também o perigo iminente de um inseto ou uma fera que, instigados pelo cheiro que a flor exalava, desejassem comê-la, ela era, de fato, uma tentação: cheiro, cor, forma, tudo nela era sinônimo da tentação.

E, se para ele a contemplação bastava, nos outros, poderia despertar desejos canibalescos, então ele não podia afastar-se de junto dela.

A docilidade do unicórnio transbordava pelo olhar lançado à flor.

Anoiteceu.

E, como à noite, os deuses dos sonhos nos permitem viajar, o unicórnio viu a sua flor transformar-se em uma linda jovem, parecia renascer para uma nova vida.

Assim como as pétalas da flor, a pele da virgem era tão aveludada e  com um sorriso ela o tornou cativo. Ele não resistiu, aproximou-se dela, sem nenhuma cautela e desejou ardentemente poder abraçá-la com toda força e ternura que lhe fosse permitido, ainda que por alguns minutos.

Ao tocar-lhe a pele, seu corpo estremeceu e ele ficou paralisado, como se tivesse em transe, mas, ainda assim, insistiu e roçou-lhe mansamente o corpo aveludado.

A moça sorriu para ele, depois, tocou-lhe a face, acariciou-lhe o chifre em espiral e, neste momento, ele era, agora, um ser humano. Os jovens lançaram-se um nos braços do outro e aconteceu o beijo ardente, unindo definitivamente os amantes.

O sol vinha chegando de mansinho, enquanto ele despertava com a sensação de que tudo fora real. Demorou para abrir os olhos, queria que aquilo que eles viveram em sonho fosse verdade, não apenas um sonho.

Continuou sonhado com sua flor azul, queria ver este sonho realizado, ah! como queria!

Abriu lentamente os olhos e descobriu o que o sonho e o desejo podem realizar.

(Do livro: Súbitas Presenças de Sônia Moura)

UNICORNIO

É PERMITIDO SONHAR

É PERMITIDO SONHAR (Autoria: Sônia Moura)     sonhos

Depois de um dia cheio participações em eventos, depois de ter vivido emoções diversificadas:  saudades,  alegrias,  frustrações, encontro com o ex- eterno amor e, ainda,  depois de muitos goles de cerveja, Eliane voltou para casa e nem precisou encarar seus medos e frustrações, pois o efeito do álcool lhe tirara este direito ou lhe poupara a dor da solidão e o desencanto dos amores perdidos.

Tantas emoções num mesmo dia, tantos sorrisos e tantas lágrimas, as quais  ela fez grandes esforços para não que estas não se tornassem públicas, foram lágrimas espremidas por  aquela rejeição.

Diziam que ela dramatizava,  dramatizava? As pessoas são mesmo engraçadas.

A vida dela, sim, era um drama, mas, como ninguém vive os dramas alheios, o que pertence ao outro: alegria ou dor, é transformado conforme os interesses, em alegria de todos ou em drama que deveria ficar somente com o outro.

Bastava que Eliane ensaiasse fazer uma queixinha, uma só, que logo,  palavras cruéis eram disparadas:- Nossa, como é reclamona; – É muito chata ou, – Não sei porque Eliane reclama tanto! (Mesmo que outras pessoas do grupo tenham reclamado, muito, mas muito mais que ela).  Na verdade, ninguém lhe dava a chance de fazer um pouqinho de manha, pois  ninguém entendia que ela queria mesmo era um pouco de atenção e carinho.

Mas quem disse que as pessoas entendem as carências? Pura ilusão, pura balela, você precisa aprender a conviver com suas carências, e, acredite,  ninguém quer saber  sobre elas. Talvez um terapeuta muito bem pago a escute, mas será que entenderá, de fato, o que se passa com um coração apinhado de mágoas e de carências? Estas eram questões que Eliane sempre colocava no plano de suas discussões internas.

E, entre pensamentos lúcidos, misturados aos efeitos etílicos, foi dormir.

A noite lhe reservava uma grande surpresa, trazendo até ela alegria, amor, carinho e alívio para o corpo, para a alma e o coração. Sonhara o sonho mais lindo dos últimos anos. Algo transcendental, algo que a deixou leve e a fez acordar sorrindo para a vida e Eliane se permitiu ser feliz e desejar que aquele sonho se transformasse em realidade.

Dizem que os sonhos podem se tornar realidade, então, Eliane passou a desejar com toda força que o seu sonho se materializasse e só restava a ela  esperar. Há muito tempo Eliane aprendeu que, por mais que a vida seja dura ou difícil, sempre será permitido sonhar..

(Do livro: SÚBITAS PRESENÇAS de Sônia Moura)

PROMESSAS

PROMESSAS                                                      ESCREVER

(Autoria: Sônia Moura)

Um novo ano estava para começar e Mirella tomou uma decisão, estava segura e anotou na agenda do próximo ano:

1 – Suavizar as marcas do tempo e melhorar a pele; 
2 – Clarear os dentes;
3 – Fazer exercícios; 
4 – Passear mais; 
5- Fazer aula de dança.

Fechou a agenda, precisava arrumar-se para ir ao cinema com as amigas.

Vestiu um vestido branco; calçou o sapato azul celeste; apanhou seu cordão com um conta azul turquesa e os brincos dourados e saiu.

O filme as fizera rir muito, saíram do cinema mais leves. Foram a um bar, sentaram-se ao lado de um casal de namorados que pareciam bem apaixonados. De repente chegou um homem e sentou-se com o casal que já estava conversando com Mirella e suas amigas. As apresentações foram feitas, o homem gostou de Mirella e, a partir daquele dia, começaram a namorar.

As marcas do tempo foram aos poucos tornando-se suaves, o sorriso estava mais radiante, os dentes pareciam brilhar mais; Mirella passou a movimentar-se muito, mesmo sem ir à academia, os finais de semana eram feitos para os mais interessantes passeios e um deles era dançar com Alfredo, o novo namorado e seu parceiro de dança.

O ano novo chegou e Mirella esqueceu-se totalmente de seguir os passos que anotara na agenda para seguir no novo ano, que, para ela, começara meses antes.

(Do livro CONTOS E CONTAS de Sônia Moura) 

O CONVITE

O Convite
(Autoria: Sônia Moura)

cONVITE DE cASAMENTO


Há quase dois anos Regina namorava Guilherme, conheceram-se durante uma viagem de negócios que fizeram a São Paulo. O tempo passara muito rapidamente, eram os dois anos mais felizes da vida daquela linda morena de cabelos negros e anelados e de grandes olhos azuis.

Guilherme era um jovem executivo que dirigia uma grande empresa em Porto Alegre, enquanto no Rio de Janeiro, Regina exercia as funções de uma executiva tão competente, quanto ocupada.

Eles não se encontravam com a freqüência desejada, pois, além de terem residência em cidades diferentes, ambos viajavam muito. Mas, ainda assim, o namoro ia de vento em popa, o casal parecia feito um para o outro, e, quando estavam juntos, como dois pombinhos, arrulhavam em hotéis pelo Brasil afora, pois dificilmente conseguiam se encontrar em suas cidades.

Vez por outra, Guilherme também viajava à Europa, onde ia visitar seus pais que moravam em Londres, aproveitava para tratar de negócios, participar de congressos e de outros eventos, e, embora Regina também fosse à Europa, a trabalho, não tinham conseguido ir juntos ao velho continente.

Um dia, Regina foi chamada à presidência, fora designada para participar da inauguração da nova filial. Esta notícia foi bem recebida, parecia um milagre, pois Regina iria poder tirar uns dias de folga.

Na verdade, a história não é bem assim, mas a inauguração de mais uma filial na cidade de Moréia e, ali pertinho de Moréia, numa cidade a mais ou menos três horas de viagem, morava Virgínia, uma amiga de infância de Regina, que se casara e fora morar numa cidade chamada Real, assim sendo, a executiva decidiu que, estando tão perto, iria fazer uma visita à amiga e aproveitaria para ficar por lá mais uns dias, além dos quatro dias em que estaria participando da implantação da nova filial.

Naqueles dias, Guilherme estaria em Paris e passaria também um tempo em Londres, visitando os pais. Aliás, pensou Regina, ainda não pude conhecê-los e nem ao restante da família, também, todo mundo morando fora do Brasil, só Guilherme viera para cá, para dirigir a filial de uma das empresas da família, no Brasil.

No aeroporto, Regina e Guilherme despediram-se e tomaram rumos diferentes, ele ia rever a Torre Eiffel e o Big Ben e ela iria conhecer aquela cidade de nome tão estranho – Moréia – e as suas famosas árvores frondosas que, naquela época, estavam floridas, colorindo as ruas, os becos e os quintais das casas, depois, iria cair na Real, quer dizer, iria à cidade chamada Real, a moça riu de seus pensamentos.
Iria descansar naquela pequena cidade e, principalmente, iria respirar o ar puro do campo, beber leite fresco, comer as coisas gostosas da fazenda de Virgínia e João.

Na despedida, Regina sentiu que Guilherme parecia querer falar-lhe algo, mas hesitou e partiu, deixando-a com um longo beijo na boca e com estas palavras a martelar-lhe os ouvidos: -Haja o que houver, lembre-se de que eu amo você! Regina resolveu não pensar muito sobre a hesitação de Guilherme.

Na primeira semana, com a competência de sempre, Regina cumpriu o seu papel, orientou, fiscalizou, definiu estratégias, e, no último dia, à noite, houve uma pequena festa, seguida de um jantar de despedida para o alto escalão da empresa.

Durante a festa, Regina percebeu os olhares interessados que Jorge, um dos gerentes, lançava em sua direção, mesmo lisonjeada, preferiu ignorar, por duas razões: não gostava de misturar trabalho e namoro e, claro, em sua vida, havia Guilherme.

Na manhã seguinte, bem cedo, um carro da empresa estava à disposição para levá-la à cidade Real.

Virgínia e João a esperavam, ansiosos. As amigas abraçaram-se com a força da saudade acumulada, há muito tempo, depois, Regina foi apresentada a alguns empregados da fazenda Confraria que se encarregaram de seus pertences.

Aquele primeiro dia na fazenda serviu, principalmente, para que as amigas atualizarem alguns assuntos, pois, embora se comunicassem por e.amils, msns e telefones, nada substitui o encontro cara-a-cara, olho no olho. E nos momentos seguintes, haveria passeios, risos, beber o leite fresquinho, ver o gado no pasto e desfrutar das coisas boas que existem em uma fazenda como aquela.

As duas eram de famílias abastadas, Regina era a única herdeira de uma família, que dominava o mercado imobiliário, em várias capitais brasileira, além de outros negócios, já Virgínia, assim como João Alberto, era filha de importantes latifundiários, e, ao se casarem, resolveram ir morar no campo; ele veterinário e ela administradora de empresa, ficaram com a Fazenda Confraria para dela cuidar.

Quando Regina falou para Virgínia que ainda não conhecera os pais de Guilherme, a amiga estranhou o fato, mas Regina disse que Guilherme prometera que o encontro entre ela e os pais dele aconteceria em breve.

Na volta do passeio à cachoeira, um lauto almoço aguardava o casal e a amiga, após o almoço, um dos empregados entregou à dona da casa a correspondência que o carteiro deixara pela manhã, pedindo muitas desculpas pelo atraso da entrega.

A dona da casa começou a abrir os envelopes, e disse à amiga: – Desculpe, Regina, mas preciso fazer isso o mais rápido possível, porque aqui o correio, dependendo do tempo, às vezes atrasa, pois fica difícil para o carteiro chegar até aqui. Por exemplo, choveu muito, principalmente nas duas últimas semanas, aí, amiga, ninguém consegue chegar à fazenda.
No meio da correspondência havia um convite em nome do Sr. e Sra. Chusmann Steindorff, sobrenome da família de João Alberto, Virgínia falou: -Deve ser para os pais do João. E colocou o convite sobre o bufê.

À noite, como os pais estavam na Europa, João resolveu abrir o envelope, passou os olhos sobre ele e mostrou- o à mulher, acrescentando:- Papai me falou sobre este casamento, sabedores das dificuldades para se chegar aqui, principalmente nesta época, os pais do noivo entraram em contato com papai e formalizaram o convite por telefone, por isto, meus pais foram para a Europa.

Virgínia admirava detidamente a beleza, o design, a finesse daquele convite de muitíssimo bom gosto, era de fato muito bonito. De repente Virgínia disse: – Olha, a coincidência, Regina, o nome do noivo também é Guilherme.

– Ainda bem que não é o meu, respondeu Regina, rindo fartamente.

Em seguida, todos foram para o varandão jogar conversa fora, olhar o luar, sentir o vento fresco da noite e sentir o cheiro das flores, molhadas pelo orvalho. Lá pelas tantas, ainda surgiu um peão com uma viola, aí a noite se alastrou e demorou muito a passar, ninguém queria ir dormir.

Na madrugada, Regina resolveu escrever em sua agenda, palavras para depois mostrar a Guilherme e começou: Moréia, 23 de setembro…. Falou para si mesma: – Engraçado, Guilherme não entra em contato há três dias, já liguei para o celular, mas ele não atendeu, no escritório de Londres, dizem que ele não está, coisa estranha… Foi dormir e sonhar com Guilherme.

No dia seguinte, enquanto Virgínia dava ordens aos empregados, Regina apanhou o convite para apreciar-lhe a beleza, a cor perolada, era fascinante, abriu-o e lá estava: O Sr. Evanildo Pires Saldanha Istalaff Gadanha e Sra e o Sr.Marcel Euvides de Aurora Lombardo convidam para o casamento de seus filhos Guilherme Francesco e Heidden Tasty a realizar-se às vinte horas do dia 23 de setembro de dois mil e oito, na Igreja… .

Ao voltar para a sala, Virgínia encontrou a amiga desmaiada, enquanto o convite, agora sem nenhum glamour, dormia a seu lado…

(Do livro: Súbitas Presenças de Sônia Moura)

AFRODITE E AS ROSAS

AFRODITE E AS ROSAS                                rosa tatuada


(Autoria: SÔNIA MOURA)
Carregava nos braços as marcas de um tempo em que em seu leito, tal qual o leito de um rio, via passar encantos e encantadores de ilusão, sobre o seio esquerdo trazia uma tatuagem de Afrodite carregando um ramo de rosas e dizia que representava o viço das rosas transportadas por beijos de amantes. Não se importava nem um pouco com as faladeiras do bairro, sentia-se livre, enquanto bailava pelo salão, presa nos braços dos rapazes e solta nos braços da alegria.
Agora, concentrou-se e deixou fluírem as imagens do passado que brincavam em seus olhos, estas imagens eram a sua antiga realidade, eram o seu sonho de ontem e sua saudade de hoje. Aqueles tempos remotos estavam sobrepostos, se decompondo e se recompondo em linguagem poética. Ah! Se as palavras fossem capazes de traduzir aquela saudade e aquela alegria, que agora viviam às margens do seu rio de lembranças, perdidas em labirintos da memória, agora dissolvida pelo tempo.
Emocionada, voltou no tempo e pisou naqueles mesmos caminhos. Por que afastara aquele homem de sua vida? O retrato dele sempre preso na lembrança, enraizado no invisível mais visível que existe – enraizado na saudade.
Doidivanas, era o que diziam dela, mas tinha consciência, tinha limites. Estava mesmo apaixonada por ele, mas nem toda paixão e poesia ofuscaram, para ela, a realidade. No momento que a paixão começou a aflorar, Murilo também começava a trilhar um caminho de muito futuro nos negócios e na política, e a amada sabia que ele largaria tudo por ela, então, largou-o primeiro, antes que toda a estrutura de futuro dele ruísse.
Sumiu no mundo, criou a impossibilidade de comunicação, ganhou novos rumos. Tudo agora era muito enigmático, abreviava a dor lendo Nietzsche, de onde tirava clareza e sentido para sua vida, que agora era apenas a metáfora do passado.
Precisava renegar o passado, assim o fez. Ele era tão jovem, ela também, mas já sabia de que somos capazes por amor. E eles estavam enamorados. Não podia ser mesquinha, ou tudo podia se complicar para ele.
Uma metamorfose obtida por meio de operações plásticas, a fez morrer para seu antigo mundo, mas por um bom tempo, sozinha no quarto, continuava procurando seu rosto no espelho. Agora, em sua vida, precisava equilibrar-se entre dois planos, para poder tocar o passado e anular o presente, só assim poderia crer no futuro. Não importava o tempo, desde que continuasse a identificar no centro das coisas, sua imagem fundamental: Murilo.
Considerava seu passado como um baú inviolável, seu presente era límpido, suas emoções eram relembrar o passado e sonhar com um futuro, no qual a luz da tarde, suave não permitiria a ninguém recusar qualquer encanto, todos viveriam plenamente seus sonhos.
Só pedia que lhe fosse dada a oportunidade de realizar uma última contemplação: ver, mesmo que ao longe, aquele que sempre fora seu amado. À primeira vista, este desejo íntimo parecia impossível, mas, como não se foge do destino e nas mãos dele todos somos joguetes … Deixou-se levar pelo sonho.
Larissa, uma das poucas amigas de Angélica, adorava bater papo pela internet. Um dia, convenceu Angélica a brincar também. Inicialmente ela recusou, mas depois começou a papear com “Cavaleiro Audaz”, gostou e prosseguiu. O “Cavaleiro” perguntou se ela gostava de poemas, diante do sim, ele escreveu: “Com que palavras ou beijos ou lágrimas/ se acordam os mortos, sem os ferir”. O passado voltava nestes versos. Lágrimas desceram pelo rosto transformado de Angélica. O autor, quem era mesmo?, perguntou ao Cavaleiro Audaz.
Ele prometeu que pessoalmente diria à “Poliana” o nome do autor. Combinaram que ela levaria uma rosa amarela na mão direita e ele, um buquê de rosas vermelhas. Marcaram o encontro para domingo.
No decote, Afrodite sorria.

[Do livro MINIMAMENTE CRÔNICAS de SÔNIA MOURA]

                                                                                                               

O DONO DO BANCO

O Dono do Banco
(Autoria: SÔNIA MOURA)

Era pessoa importante. Todos o conheciam e todos (ou quase todos), naquela cidade, deviam a ele. A bem da verdade, não tinha mesmo como escapar, por isso os moradores confessavam abertamente sua dependência em relação àquele homem.
Ele era bondoso, por isso todos sabiam que podiam contar com ele, nas horas difíceis de suas vidas. Seu ar de importante, como diziam os conterrâneo, não anulava sua bondade, seu bom caráter e sua vontade de ajudar.
Dizer que ele não cobrava “juros”, é incorrer em erro. Cobrava, claro que sim,mas, ainda assim, todos reconheciam que seus serviços valiam ser bem pagos. Ninguém se importava com os juros por ele cobrados.
Seu Malaquias era uma figura ímpar,  parecia igualar-se ao pé de jacarandá que estava fincado no meio da praça, sabe-se lá há quanto tempo.
Ambos imponentes, ambos espécimes de muita fibra, ambos altivos e que iriam durar muito, só não deveriam ser retirados de seu habitat, isto seria um crime. Independente do que diz o IBAMA, era crime porque ambos eram amados pelos seus.
Durante anos, seu Malaquias cuidou daquela praça como se fosse o quintal de sua casa, aliás, a praça era a sua casa.
Antes do amanhecer lá estava ele cuidando de tudo e de todos: dos bancos, do busto do ilustre fundador da cidade, das plantas, do lago, dos bichos (gatos vadios, peixes coloridos, pássaros cantadores, cães de rua e dos patinhos do lago).
Numa certa manhã primaveril, seu Malaquias foi encontrado morto, sentado no banco da praça. Parecia sorrir para as flores amarelas do enorme flamboyant que, dizem, ele plantara naquela praça, quando era um menino de calças curtas.
Quais os juros cobrados por seu Malaquias? Muito simples: exigia que tratassem a natureza com desvelo, amor e carinho. Eram  juros mais que justos.
Os moradores, a quem seu Malaquias tanto ajudara, dando conselhos, ajudando aos pais, pois ali ficava observando as crianças , enquanto estas brincavam e já as livrara muitas de perigos; aos mais velhos que contavam sempre com sua palavra amiga, enfim, a toda a gente, para a qual ele deixou aquele tesouro, cravado no coração da cidadezinha do interior, todos concordaram que aquele banco era do seu Malaquias e dele sempre seria.

Assim, seu Malaquias passou para a história da cidade, como o dono do banco. Até hoje, passado tanto tempo, lá está o banco e uma placa com a seguinte inscrição: “Ao amigo Malaquias, a cidade reserva, para sempre, este lugar, ele é o dono deste banco.”

((Do livro Súbitas Presenças de SÔNIA MOURA)

                           Banco da praça

O SONHO

O Sonho

                   (Autoria: SÔNIA MOURA)

Meus filhos e meus netos estão dizendo que eu estava dormindo. Qual! Eu estava sonhando. E que sonho! Sabe, Cleo, era um sonho lindo, mas lindo demais.
Sabe o Alfredo, sabe, é aquele mesmo, lembra dele? Pois é, menina, eu estava sonhando com ele. Ah! Cleo, ele estava lindo. E o sorriso? Menina, estava mais radiante ainda.
Eu ficava olhando para ele com aquela cara de boba, ele era lindo…Se eu era apaixonada? Se eu era apaixonada? Ah! Você só pode estar brincando.
Mas voltemos ao sonho.
Lembra? Ele adorava roupas claras, e como se vestia bem, nossa! No sonho, sabe, ele estava com uma roupa clara, muito bonita, que até parecia brilhar com a luz daquele lugar, cujos reflexos pareciam quadros nas paredes, que davam um ar de mistério ao ambiente.
Alfredo sorria e acenava para mim. Nem sei porque, mas eu relutei um pouco, mas não resisti e fui chegando, até que nossas mãos se tocaram. Senti uma alegria, Cleo, mas uma alegria que não dá para descrever.
Parecia que o mundo se mudara para outro lugar ou era eu que estava me mudando. Eu estava-me sentindo nas nuvens. É, esta era a sensação, eu flutuava.
E já fazia tanto tempo que não nos encontrávamos…
Não sei se eram os meus olhos ou se eram apenas coisas de sonho, mas Alfredo continuava o mesmo, sei lá, parecia também que ele não falava, mas eu compreendia tudo, então, ele me pegou pela mão e fomos caminhando (ou seria flutuando?) por um lindo lugar, senti a sua declaração de amor, e esta penetrou cada poro do meu corpo, entrou na corrente sangüínea, Cleo, e eu pensei que estava tendo um “troço”.
Cleo, agora me diga, por que meus filhos, netos e amigos estão ali chorando e dizendo: Ela estava dormindo! Ela estava dormindo! Era só me perguntar que diria a eles: eu me embrenhei para dentro deste sonho e me perdi, ou melhor, me achei e achei o meu amor.
Cleo, que nariz vermelho é este? Cleo? Está-me ouvindo? Você está chorando? Por quê? Cleo, Cléééééooooo! Desculpa-me, eu sei que minha alegria não está combinando com este ambiente, mas é que eu estou muito feliz!
Que coisa estranha, ninguém fala comigo. Isto é um enterro? Quem morreu? Quem? Alfredo? Você também está aqui? Veio me buscar, que bom! Espera só um pouqinho, quero ver quem está no caixão. Sou eu? Eu? Estranho, ainda assim não consigo ficar triste.
– Já vou, Alfredo, agora sei que está na hora, quero só dar um beijo em meus filhos e netos. Eu sei que eles não vão retribuir, acho que não vão sequer sentir, mas eu preciso me despedir.
Vamos?

(Do livro Súbitas Presenças de SÔNIA MOURA)

Sonho bom

O LEQUE ABERTO

           O LEQUE ABERTO                Leque

(AUTORIA: SÔNIA MOURA)

Bruto que só, sempre que podia, Antônio dava um jeitinho de desmerecer sua mulher. Ela, baixava a cabeça e ia chorar no canto. Nazaré dependia dele, para tudo.

Namoradas? Antônio tinha-as aos montes, usava-as e depois as descartava, assim como fazia com a mulher, que só servia para servir-lhe, nada mais. Nazaré não reclamava de nada, nem das namoradas, nem dos maus tratos, nem do abandono. Não reclamava de nada, apenas abanava-se, tentando espantar a dor.

Refugiada em sua tristeza, criava o mundo sonhado, nele ela era rainha e princesa, era amada e amante, era dama e cortesã, e, quase sempre, era uma maravilhosa gueixa.

E Antônio? Este nem existia, não era sequer sombra, não era nada.

A mulher vestia suas fantasias, vivia um grande amor romântico, achava o seu Romeu, o seu príncipe encantado.

De todas as personagens por ela criados, a de que mais gostava era a gueixa Chinuá, uma linda japonesinha, que, com o seu leque e com o seu olhar, arrebatava corações.

Antônio nunca notara que Nazaré tinha uma infinidade de leques, cada um mais belo que o outro.

Na verdade, Antônio não percebia nada ou ninguém naquela casa.

LEQUES

Entre muitos leques de sua coleção, um era o preferido, o vermelho, com flores branquinhas, tendo como miolos pequenas contas amarelas. Este leque tinha lugar especial no aposento do casal e nos sonhos de Nazaré.

Um dia, Nazaré vestiu seu quimono de gueixa, abriu seu lindo leque vermelho, sentiu-se forte, sentiu-se livre e, naquele momento mágico, saiu porta a fora, sem olhar para trás e nunca mais voltou. Saiu pelo mundo a abanar-se com o leque florido e a espantar qualquer sombra de Antônio que ousasse se aproximar dela.

[Do livro CONTAS E CONTOS de SÔNIA MOURA]

Leque

INFORTÚNIO

Amor

 Infortúnio
(Autoria: SÔNIA MOURA)

Clarisse fechou os olhos e ouviu, outra vez, aquelas palavras mal ditas. Será que aquele homem não conseguia ver sua alma, seus pensamentos e seu rosto? Sentiu-se como um pedaço de carne colocado frente a um animal irracional faminto.
Não, ele não a ouvia, nada do que dissesse ou fizesse iria trazê-lo para a realidade, pois, assim como sua mente, seus olhos só tinham um foco: sexo e nada mais.
Naquele dia, Clarisse sentiu-se mal. Teria ela feito ou dito algo que encorajasse aquele comportamento? Não, absolutamente, não, ele é que era um ser inconveniente, grosseiro e mal educado. Estas eram as palavras que desenhavam o perfil daquela criatura.
Clarisse havia se interessado ´por ele, mas com este comportamento, impossível prosseguir com qualquer forma de relacionamento. Impossível!
Olhando as vitrines, os corações expostos, como o dela, trouxeram à tona a data comemorativa, era o dia dos namorados.Entristeceu-se. Estava sozinha, é Clarisse estava sozinha, e já fazia um bom tempo.
Continuou olhando as vitrines, enquanto em seu pensamento vinha-lhe a certeza absoluta de que “antes só do que mal acompanhada”.
Riu do seu infortúnio.
Comprou umas balinhas gostosas, entrou no cinema e pôde sonhar com o mundo real.

(Do livro: Minimamente Crônicas de Sônia Moura)

A LINDA ROSA JUVENIL

A LINDA ROSA JUVENIL     A linda Rosa Juvenil
(Autoria: Sônia Moura)

Onde andará a linda Rosa juvenil, em que jardim se escondeu? Ou terá sido roubada para agradar os olhos e alegrar o coração de algum Crisântemo apaixonado?
Que jardineiro terá podado o seu florescer, para entregá-la à amada Margarida?
Ou quem sabe, um outro jardineiro cuidou dela com desvelo, num jardim secreto, repleto de amor?
Por onde andará a linda Rosa juvenil? Deixou o castelo? Casou e mudou ou envelheceu?
Hoje, a lembrança da linda Rosa juvenil veio-me visitar e me trazer o passado plantado num jarro azul com uma enorme conta amarela, a cor da saudade, plantada bem no centro do jarro, como um olho mágico a me mostrar o passado, sem que ele me veja.
E, como só eu tenho acesso a ele, o passado não sofre a minha ausência, não vê o meu presente, não vê o meu sofrer, pois o passado não conhece a Saudade, não foi apresentado a ela.
O passado não morre, como muitos pensam ou tentam jogá-lo ladeira abaixo, não, ele perambula pelas lembranças, carregando um Cravo vermelho na mão direita, ora a nos alegrar, ora a zombar de nós.
Agora sei que a linda Rosa juvenil, aquela, que vivia alegre no seu lar, um dia encontrou a bruxa má, muito má, aquela que adormeceu a Rosa, assim, bem assim… E o mato cresceu ao redor do castelo e o tempo passou a correr… a correr…
E, até hoje, a linda Rosa juvenil espera o belo Rei, para despertá-la assim, bem assim, para o Amor-Perfeito.

(Do livro: CONTOS E CONTAS, de Sônia Moura)