Recebi do meu amigo Valter Estelita este belo e fascinante conto, de sua autoria.
DADIVOSA
Um pedaço de muro que nem muro é cerca um quintal em que nem terra há e um jardim impossível, sem flores nem nada, compõem a paisagem de um sonho partido pelo grito que não sai.
Ao mesmo tempo em que “flashs” espocam em buquês e aromas, também iluminam revolta e ciúme.
E outros recortes de angústia formatam a noite que se arrasta e o tornam vítima dos cães raivosos da vingança e da dor da falta do amor maior.
Tenta fugir, mas os caminhos se apagam; acena para alguém que não vê. Até a garrucha enferrujada que por herança lhe coube, volta e meia, lhe vem à cabeça. Afasta o desatino de imaginar-se estirado ao lado do retrato, ou mesmo entre grades, vítima do gesto tresloucado.
Pergunta daqui a dali, e eis que lhe surge o que tanto almeja – a saída.
Nem precisa bater: a porta se abre, e quase cai nos braços de Francilene, que, a despeito do nome, é rica de atributos tais, que seria impossível não dividi-los, generosa que é, com outros tantos. Daí o inconformismo de Reginaldo e esses sonhos confusos que se misturam tanto e o deixam banhado de suor nesse despertar fora de hora.
Imprensa as lágrimas no travesseiro, a ponto de sentir o molhadinho se espalhando.
É o que falta para começar a reencontrar o sono e a esperança de sonhos, agora, com uma Francilene possível, menos favorecida e dadivosa.
Abre outra porta e cai nos braços do despertador e da realidade.
A luz de mais um dia se insinua fatiada e, a essa hora, Francilene deve estar longe de despertar, provavelmente envolvida por outros braços, numa cama macia e perfumosa, depois de mais uma noitada…
Tão bom se Francilene não existisse!…
Eis uma leitura possível deste gostoso conto:
Dentro de um ambiente com um forte teor afetivo, circula esta história de amor, aparentemente indefinida, pontuada por incertezas e nostalgias.
A interioridade permeia este conto de múltiplas dimensões simbólicas, cuja narrativa move-se num ciclo metamórfico que vai criando imagens dinâmicas, as quais nos transportam para o mundo dos sonhos, ao mesmo tempo em que finca nossos pés em espaços e tempos densos, divididos entre o real e o imaginário.
Texto de teor elástico coloca o protagonista entre o amor e a dor, entre a dúvida e a certeza e, por suas metáforas, provoca no leitor sensações de elasticidades poéticas, as quais criam imagens fundamentais, refletindo a solidão de um e de todos.
Dentro desta floresta simbólica, fulcro desta narrativa, o ciúme mostra o que há de incontestável em todo coração apaixonado: a dúvida que há de surgir em algum momento impreciso.
Desde o início, pela exposição de fatos com significações desconectadas da realidade, percebe-se a tensão que há de permear a narrativa, uma vez que o ambiente apresentado já nos mostra uma região de carência e de perdas, mostrando um eu que se sente amputado da sua relação com o outro.
Este “eu” parece dissolver-se em seu isolamento, com isso, o perfil da realidade, envereda-se por desvios traçados pelo desvario da incerteza.
Ameaçado por um sentimento de vazio e de incompletude, o protagonista se coloca (e coloca o leitor) a oscilar entre o sonho e a realidade, fazendo surgir uma voz pontilhada de certo encantamento barroco.
Assim, criando sucessivos momentos de existência do tempo e do espaço, o texto traz à superfície uma realidade com força expressiva e simbólica, como se adiasse a vinda sempre esperada e, ao mesmo tempo negada, da mulher amada.