APENAS PALAVRAS

 APENAS PALAVRAS

Apenas Palavras  (Sônia Moura)

Chove bastante lá fora e em meu coração também, comprova Maíra. Tudo nublado, triste, sombrio, apenas as gotas que escorrem pela vidraça, exibem um toque de beleza e alegria, quando a luz artificial bate sobre elas e as transforma em contas multicores. Enfim, o que traz beleza à cena é nascido do artifício, assim como é totalmente artificial o amor que ela vive neste momento. Ela fecha seu diário e se põe a devanear sobre o poder das palavras.
Se eu pudesse, transformaria minhas palavras em aves com seus bicos pontudos, e pediria para que elas puxassem os sete véus que escondem as artimanhas do amor, só então eu poderia ver em que caminho o verdadeiro amor se esconde.
Se eu pudesse, mandaria minhas aves – palavras, com seus olhos argutos, voarem por aí, para encontrarem as ternuras perdidas e trazê-las de volta, ao invés de as deixarem soltas no meio deste furacão, onde sentimentos são desmantelados e jogados ao léu.
Se eu pudesse, daria asas às minhas palavras, para que elas sobrevoassem os oceanos, até encontrarem um porto seguro para eu aportar e lá ficar a contemplar mansamente o infinito.
Se eu pudesse pediria que minhas palavras me levassem em suas grandes asas para visitar estrelas e outros céus, até eu encontrar um lugar, onde me fosse permitido sonhar.
Maíra apaga a luz, as gotas perdem o brilho, enquanto ela vai dormir, desejando que aquele amor artificial também se apague de sua vida.
No fundo, ela sabia que este desejo era forjado apenas por palavras sem asas.

(Da obra: CONTOS & CONTAS de Sônia Moura)

APENAS PALAVRAS

O LEQUE ABERTO

 O LEQUE ABERTO

O LEQUE ABERTO  (Sônia Moura)
Bruto que só, sempre que podia, Antônio dava um jeitinho de desmerecer sua mulher. Ela, baixava a cabeça e ia chorar no canto. Nazaré dependia dele, para tudo.
Namoradas? Antônio tinha-as aos montes, usava-as e depois as descartava, assim como fazia com a mulher, que só servia para servir-lhe, nada mais. Nazaré não reclamava de nada, nem das namoradas, nem dos maus tratos, nem do abandono. Não reclamava de nada, apenas abanava-se, tentando espantar a dor.
Refugiada em sua tristeza, criava o mundo sonhado, nele, ela era rainha e princesa, era amada e amante, era dama e cortesã, e, quase sempre, era uma maravilhosa gueixa. E Antônio? Este nem existia, não era sequer sombra, não era nada.
A mulher vestia suas fantasias, vivia um grande amor romântico, achava o seu Romeu, o seu príncipe encantado.
De todas as personagens por ela criados, a de que Nazaré mais gostava era a gueixa Chinuá, uma linda japonesinha, que, com o seu leque e seu olhar sedutor, arrebatava corações.
Antônio nunca notara que Nazaré tinha uma infinidade de leques, cada um mais belo que o outro, na verdade, Antônio não percebia nada ou ninguém naquela casa.
Entre muitos leques de sua coleção, um era o preferido, o vermelho, com flores branquinhas, tendo como miolos pequenas contas amarelas. Este leque tinha lugar especial no aposento do casal e nos sonhos de Nazaré.
Um dia, Nazaré vestiu seu quimono de gueixa, abriu seu lindo leque vermelho, sentiu-se forte, sentiu-se livre e, naquele momento mágico, saiu porta a fora, sem olhar para trás e nunca mais voltou. Saiu pelo mundo a abanar-se com o leque florido e a espantar qualquer sombra de Antônio que ousasse se aproximar dela.

(Da obra: CONTOS & CONTAS de Sônia Moura)

RAINHA

 rainha

Rainha  (Autoria: Sônia Moura)

Cansada da vida de rainha, resolveu fazer uma viagem mágica, embarcou em uma concha madrepérola, conduzida por uma andorinha azul e saiu pelo mundo a sobrevoar mares e a se embrenhar nas florestas dos ares.
Passou pela cidade onde só moravam fadas, ganhou de presente favos de mel, colhidos em colmeias das abelhas que adoravam o deus sol e, foi segurando nas raízes do sol, que a rainha seguiu viagem.
E, num fim de tarde, numa caixa rodeada por cortinas transparentes, chegou a seu destino, desembarcou na estação do tempo eterno e foi coroada com flores e contas com as cores da poesia.
Só assim Natércia sentiu-se, de fato, rainha.

(Da obra: CONTOS & CONTAS de Sônia Moura)

rainha

SALVO PELO GONGO

  salvo pelo gongo

Salvo pelo Gongo  (Autoria: Sônia Moura)

Naquele dia, Elias, um pacato cidadão, saiu mais cedo do trabalho, precisava resolver uns assuntos lá pelos lados da zona sul. Depois de tudo solucionado, decidiu não voltar para a empresa, iria aproveitar para passear um pouco, olhar o mar, olhar as lindas lojas daquela região. Há tanto tempo não desfrutava destes simples prazeres…
Passeando pelo bairro nobre, os olhos sensatos de Elias se encantaram com um colar de contas âmbar e, deste aquele instante, não pensava mais em outra coisa. Aquela joia virou uma ideia fixa, mas ele não tinha condições para comprá-la, então, começou a pensar num modo de adquiri-la e concluiu que só havia um jeito de ter aquela preciosidade, iria roubá-la.
Tirou férias no trabalho. Observou horários, funcionários, câmeras e seguranças da loja e planejou tudo tim-tim por tim-tim. Precisava agir sozinho.
Chegou o dia D, Elias estava confiante, mas, na hora H, uma dor de barriga, dessas de incapacitar qualquer um, frustrou os planos perfeitos de Elias, assim ele desistiu da ideia.
Elias voltou a olhar a vida com os mesmos olhos sensatos de antes do enfeitiçamento, a diarréia  salvara o pacato cidadão de se tornar bandido.
Ele foi salvo pelo gongo.

(Da obra: CONTOS & CONTAS , de Sônia Moura)

salvo pelo gongo

MISTÉRIOS

 MISTÉRIOS

MISTÉRIOS (por Sônia Moura)
-Tem gente que é feita de sonhos! Disse Maria, olhando para o céu estrelado, que cobria a ilha dourada. Ri de suas palavras, mas sabia que ela estava certa, eu mesma era feita de sonhos.
Tudo para mim, naquela noite, tinha a face do mistério. De onde a conhecia? Maria não respondeu à minha pergunta, apenas cantarolou uma canção de menina.
Sorri um sorriso desassossegado. Maria me olhou e disse que tudo iria se resolver logo, era só esperar. Disse isto e voltou a brincar com o rosário de contas verdes, assim como o seu olhar que tinha a mesma cor verde da esperança, realçando as delícias de uma sonhadora, na alma de menina.
Sentadas à beira do cais, com a brisa a embalar aquele momento, deslumbradas, vimos uma lua nova nascer da barriga de uma nuvem bem gorda.
Maria aproveitou aquele parto feito no céu, para falar comigo sobre as flores do jasmineiro, plantado na porta da pousada, onde eu estava hospedada.
– O jasmineiro resolveu que iria recostar-se no muro de pedras, tinha toda a liberdade do mundo, mas quis agarrar-se às pedras duras daquele muro, por que será? Perguntou-me a menina.
Com a face banhada pela luz do luar e por sua própria luz, Maria respondeu à pergunta que ela mesma fizera.
– Sabe o que eu acho, o jasmineiro pretende proteger suas flores, você já viu como o vento aqui é forte? Quantas vezes nos agarramos a “muros de pedras”, para afastar a solidão, quantas vezes ficamos esperando que um milagre aconteça para que neste reencontro entre a flor e a pedra, o mistério da vida faça germinar algo novo?
Neste instante, uma voz antiga chamou-me pelo nome. Voltei-me e vi, à luz do luar, uma imagem do passado que viera me confortar, então, a Maria que um dia eu fui, sorriu para mim, transformou-se em um lindo pássaro azul e saiu pelo mundo a voar.
Mistérios!

(Do livro CONTOS & CONTAS de Sônia Moura)

mistérios

DADIVOSA – uma leitura possível

Recebi do meu amigo Valter Estelita este belo e fascinante conto, de sua autoria.

DADIVOSA

Um pedaço de muro que nem muro é cerca um quintal em que nem terra há e um jardim impossível, sem flores nem nada, compõem a paisagem de um sonho partido pelo grito que não sai.
Ao mesmo tempo em que “flashs” espocam em buquês e aromas, também iluminam revolta e ciúme.
E outros recortes de angústia formatam a noite que se arrasta e o tornam vítima dos cães raivosos da vingança e da dor da falta do amor maior.
Tenta fugir, mas os caminhos se apagam; acena para alguém que não vê. Até a garrucha enferrujada que por herança lhe coube, volta e meia, lhe vem à cabeça. Afasta o desatino de imaginar-se estirado ao lado do retrato, ou mesmo entre grades, vítima do gesto tresloucado.
Pergunta daqui a dali, e eis que lhe surge o que tanto almeja – a saída.
Nem precisa bater: a porta se abre, e quase cai nos braços de Francilene, que, a despeito do nome, é rica de atributos tais, que seria impossível não dividi-los, generosa que é, com outros tantos. Daí o inconformismo de Reginaldo e esses sonhos confusos que se misturam tanto e o deixam banhado de suor nesse despertar fora de hora.
Imprensa as lágrimas no travesseiro, a ponto de sentir o molhadinho se espalhando.
É o que falta para começar a reencontrar o sono e a esperança de sonhos, agora, com uma Francilene possível, menos favorecida e dadivosa.
Abre outra porta e cai nos braços do despertador e da realidade.
A luz de mais um dia se insinua fatiada e, a essa hora, Francilene deve estar longe de despertar, provavelmente envolvida por outros braços, numa cama macia e perfumosa, depois de mais uma noitada…
Tão bom se Francilene não existisse!…

Eis uma leitura possível deste gostoso  conto:

Dentro de um ambiente com um forte teor afetivo, circula esta história de amor, aparentemente indefinida, pontuada por incertezas e nostalgias.
A interioridade permeia este conto de múltiplas dimensões simbólicas, cuja narrativa move-se num ciclo metamórfico que vai criando imagens dinâmicas, as quais nos transportam para o mundo dos sonhos, ao mesmo tempo em que finca nossos pés em espaços e tempos densos, divididos entre o real e o imaginário.
Texto de teor elástico coloca o protagonista entre o amor e a dor, entre a dúvida e a certeza e, por suas metáforas, provoca no leitor sensações de elasticidades poéticas, as quais criam imagens fundamentais, refletindo a solidão de um e de todos.
Dentro desta floresta simbólica, fulcro desta narrativa, o ciúme mostra o que há de incontestável em todo coração apaixonado: a dúvida que há de surgir em algum momento impreciso.
Desde o início, pela exposição de fatos com significações desconectadas da realidade, percebe-se a tensão que há de permear a narrativa, uma vez que o ambiente apresentado já nos mostra uma região de carência e de perdas, mostrando um eu que se sente amputado da sua relação com o outro.
Este “eu” parece dissolver-se em seu isolamento, com isso, o perfil da realidade, envereda-se por desvios traçados pelo desvario da incerteza.
Ameaçado por um sentimento de vazio e de incompletude, o protagonista se coloca (e coloca o leitor) a oscilar entre o sonho e a realidade, fazendo surgir uma voz pontilhada de certo encantamento barroco.
Assim, criando sucessivos momentos de existência do tempo e do espaço, o texto traz à superfície uma realidade com força expressiva e simbólica, como se adiasse a vinda sempre esperada e, ao mesmo tempo negada, da mulher amada.

dadivosa

 

Silêncio

 silencio

Silêncio (por Sônia Moura)

Entregou à mulher amada uma belíssima jóia em forma de flor, cujo miolo era representado por uma conta perolada, e, junto com ela, entregou para sempre seu coração apaixonado, a quem jamais o amaria verdadeiramente. E, desde este dia, sua alegria foi só silêncio.
Coitado.

(Da obra: CONTOS & CONTAS)

silencio

FUTURISMO

 FUTURISMO

FUTURISMO (Autoria: Sônia Moura)

Chamava-se Marinete, diziam que o pai, homem que amava as letras, lhe dera este nome em homenagem ao poeta Filippo Marinetti.
Desde sempre a menina mostrava estar além do seu tempo. Quando bebê e em criança era até engraçadinho ver as peripécias dela, mas, ao chegar à juventude, tudo mudou.
Marinete era o que a sociedade da época chamava de amoral e imoral, namorava todos e todas, sem o menor pudor, não escondia de ninguém seus desejos e loucuras. Gostava do hoje e muito mais do amanhã, vivia correndo, abominava tudo o que não fosse tecnológico, adorava uma briga, exaltava as guerras e, quase sempre, tentava resolver tudo por meio de atitudes violentas. Ela adorava as cores fortes e as usava em suas roupas, em seu quarto e em todos os seus pertences.
Dizia que as palavras precisavam ser livres, por isto as usava sem a menor cerimônia, às vezes, palavras de baixo calão, impropérios e grosserias saiam da boca da moça com a mesma facilidade que se engole água fresca, pois, para ela, isto era brincar com as palavras, Marinete não gostava das regras da língua mãe.
No entanto, havia um objeto que desbancava todos estes conceitos e o comportamento espevitado de Marinete, era uma medalhão em ouro velho com uma conta vermelho-sangue, presente da avó materna.
Sempre que punha o medalhão, Marinete se transformava totalmente, passava a ser uma dócil e gentil jovem. Alguns diziam que era o espírito da avó, uma romântica convicta que se apossava dela, e, quem defendia esta ideia dizia que ela era médium, daí as transformações tão repentinas.
E, também, dizem, até hoje, que o pai se arrependeu amargamente em ter colocado este nome na filha, pois, segundo ele, a filha não entendeu o recado do poeta.

(Do livro: Mistérios e Saudades de Sônia Moura)

FUTURISMO

VIAGEM FANTÁSTICA

 VIAGEM FANTÁSTICA


VIAGEM FANTÁSTICA (Sônia Moura)

Bastava um poema para tingir o mundo de Denise, nada como versos para colocá-la em contato com a melhor de todas as realidades: a fantasia que, dizia ela, é uma das dimensões do real e era nela que a moça se encontrava.
Quando lia uma poesia, Denise mergulhava tão fundo no reino das palavras que estas pareciam rasgar-lhe as entranhas, a penetrar-lhe a alma, então ela viajava para muito longe…
Um dia, ao ler o poema “As Contas do Meu Encanto”, encantou-se de forma tão surpreendente que resolveu “viver o poema”.
Mudou-se para a lua cheia, vestiu-se com o mesmo manto das estrelas, sentou-se no trono de um belo cometa, bebeu o leite da via Láctea, enfeitou-se com contas colhidas em asteróides e, a partir de então, literalmente, foi viver no mundo da fantasia.
Esta foi a sua última viagem.

(Do livro: CONTOS & CONTAS de Sônia Moura)

VIAGEM FANTÁSTICA

FRÁGIL FLOR

 FRÁGIL FLOR

FRÁGIL FLOR

Diziam que ela era frágil como uma flor, mas que se transformava ao receber as carícias do seu beija-flor.
Diziam, também, que, nos momentos de sexo e do amor, a frágil moça abria-se em pétalas, desabrochava, crescia, se fortalecia e, como ninguém, sabia deixar fluir o néctar na hora do prazer, deleitando-se em gozo ao receber o mel que escorria manso e, ao mesmo tempo, voluptuoso do bico do seu amado beija-flor.
Numa dessas manhãs malfadadas, o beija-flor voou para bem longe, deixando entregue a muitas dores aquela frágil flor e também levou com ele uma das relíquias daquele amor – o pingente em forma de coração, com uma pequena conta de rubi cravejada bem no centro do coração, como se fosse um punhal a ferir o peito e a alma.
Para a frágil flor, aquele era o símbolo de tudo o que representavam um para o outro e, desde este dia, ela nunca mais os viu e nunca mais viveu o bom do amor.
Dizem que, até hoje, os médicos não conseguem explicar e muito menos entender, como a triste flor continua a viver, se o coração dela nunca mais parou de sangrar.

frágil flor