O NATAL JAMAIS SERÁ O MESMO

Pensava em minha inesquecível amiga. Quanta saudade! Com ela aprendi tanto, e, infelizmente foi com sua partida que aprendi que a ausência plantada pela morte é cruel. Ah! Amiga, que falta você ainda me faz…
Acho que pensei alto.
– Ela deve ter sido alguém muito importante, falou minha neta. Ela era professora, vovó?
Afaguei-lhe os cabelos anelados e sorri para a sua juventude
– Fala sobre ela, fala, insistiu.
Sempre contei histórias para meus netos. A arte de contar histórias faz parte do enredo da humanidade; é marca de continuidade, de aproximação, mas, neste dia…
Peguei na gaveta um velho papel amarelado e entreguei à Gabriela. Leia, aí está parte da história de uma grande amizade. Conte esta história para mim.
Gabriela acomodou-se, cruzou as pernas e começou a ler. Eu já sabia este texto de cor, mesmo assim, cada palavra solta no ar me emocionava, fazia minhas lágrimas saírem de seus esconderijos e virem olhar o dia.
“Minha amiga se foi. Antônia ,que chegava sempre “processa”, se foi.
Eu nunca consegui entender quando as pessoas diziam : – Depois da morte de minha mãe, o natal nunca mais foi o mesmo. Bobagem, pensava eu, a vida continua. É, de fato a vida continua, mas só agora pude entender o vazio deixado por alguém tão querido e como, em certos momentos e em certas datas, essa dor se agrava.
Por quantos natais ela esteve comigo, este dia (a véspera de natal) era sagrado para nós, tínhamos um pacto de sangue e ela largava a casa e só após me ajudar a preparar a ceia de minha família, depois de um dia de trabalho, voltava a casa para preparar a sua própria ceia. Ah! Antônia você nem sabe a falta que faz, você com o seu gênio difícil compensado por uma bondade infinita e uma inteligência que poucos, por certo, terão percebido, foi amiga fiel e confidente por longos e longos anos.
Quantas lições de vida você me deu, quantas vezes chorei no seu ombro, que aliás, na minha enorme carência afetiva, se afigurava como o ombro da mãe que eu nunca tive. Meu Deus que amiga fabulosa!
Falávamos sobre nossos problemas, às vezes chorávamos, mas com certeza, no final ríamos muito de tudo e de todos. Quantos segredos meus foram levados por você e quantos dos seus ficarão comigo? É parceira, isto só nós duas sabemos.
No natal de 1998, você já não pôde vir-me ajudar, pois a doença maldita não permitiu, eu senti falta e sabia também que você não viria nunca mais, esta doença é cruel e implacável, mas no fundo, embora a razão saiba disto, a emoção se recusa a aceitar a verdade e nos tornamos crianças, e voltamos a acreditar em Papai Noel, então fiz a ceia como se isto não estivesse acontecendo, mas agora, amiga, é definitivo, você está em outro plano e certamente está muito bem colocada e sei que está rindo muito lá de cima, Antônia, você sempre foi feliz, mesmo que a felicidade se recusasse a se aproximar, era puxada na marra para perto e não tinha como fugir – tornava-se uma dócil prisioneira.
Quantos momentos bons ou ruins dividimos? Mas uma coisa me consola, sei que você, a seu modo, viveu intensamente, viveu o que pôde e até mesmo o que não podia, mas como era valente, encarava o que a vida mandava e seguia em frente. Por vezes pode ter sido condenada, porém, não se amole, amiga, se foi o próprio Jesus quem disse: “Aquele que tiver sem pecado, atire a primeira pedra”. – Quem somos nós, reles pecadores, para julgarmos o próximo, na verdade o que você sempre tentou foi ser feliz; e não estamos aqui para isto?
Vai amiga, vai com Deus, vai alegrar o céu, não se esqueça de mim, saiba apenas que sem você o natal jamais será o mesmo.”
Esta foi a mensagem que escrevi após a morte de Antônia, no meio de uma dor imensa…
Gabriela continuava a “ler”. Como? Eu conheço este texto palavra por palavra, sei onde se aloja cada vírgula, e o texto estava terminado: fim! Gabriela continuava…
Antônia, reconstruo sua imagem com palavras. Quero uma música terna para sustentar a dor em meus ombros. Os acordes desta canção estão em descompasso com a tristeza do meu coração, melhor ouvir outra coisa, mais lenta, mais solene, o momento é solene, minha dor é solene, o que escrevo é solene.
Sabe, amiga, lembranças que viviam em endereços escondidos foram descobertas, saíram às ruas e bailam à minha frente, provocam-me. Rio disto, lembram-me de você e de suas histórias, fazem cócegas em meus pensamentos, saem aos borbotões. Provocam-me lágrimas e risos. Lembranças envoltas em transparências azuis bailam na calçada,carregam guizos e fitas. E bailam, bailam… Não querem conversar, só querem bailar… bailar… estão soltas no ar…
O movimento das cortinas, lembra-se? – aquelas de que você tanto gostava – me trazem de volta… Solto a mão da lembrança. Um novo natal se aproxima, um novo natal que jamais será o mesmo dos tempos de Antônia. Jamais!
Gabriela falou com a doçura dos jovens: – Lindo! Vovó, lindo! E me devolveu o papel que agora não me parecia tão amarelado. Azul? Azul? Engraçado, volto a olhar aquele pedaço de papel há tanto tempo guardado. Procuro ver o texto, continuava como antes.
Chamei por Gabriela. Veio enxugando os longos cabelos anelados.
– Você esticou o meu texto, não foi? Está-me saindo uma bela escritora.
– O quê, vovó? Eu? Não, só li o que está escrito aí. Vozinha, acho que você deu uma cochiladinha. – Deu-me um beijo e saiu.

(Do livro  DOZE MULHERES CONTAM de Sônia Moura)

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *