QUESTÕES DE UMA HISTÓRIA EXEMPLAR
(Autoria: SÔNIA MOURA)
Toda cultura, vista aqui como interação do meio e representação simbólica deste, transparece por seus aspectos materiais e imateriais. A revelação de elementos e das manifestações de um determinado grupo, apresentada por formas dessemelhantes de ver e viver o mundo, pode parecer obscura para indivíduos de outros grupos os quais percebem o mundo por um prisma diferenciado.
Quando acontece a aproximação de elementos detentores de outros saberes, os diversos aspectos de uma cultura tentam-se revelar, pois as práticas culturais entronizadas por um determinado grupo, não perdem a possibilidade de alheamento, vindo ao encontro de novas leituras pela necessidade de sua manifestação.
O olhar o outro e a aceitação do olhar do outro, abertos os olhos, a mente e a alma, poderão tirar o homem da condenação de uma imensa solidão, se este conseguir não cercear a interação e não se impuser a própria renúncia da inserção da sua existência na história.
O encontro de culturas diferentes transforma o indivíduo que consegue ver além de seus limites em testemunha mais que perfeita da história do homem, dando-lhe uma visão abrangente de realidades as quais se aproximam pelas diferenças, uma vez que o elemento sustentador destas realidades é o igual pontilhado de diferenças.
Lembrei-me hoje do filme: ONDE SONHAM AS FORMIGAS VERDES, direção de Werner Herzog*, ao qual há algum tempo assisti. Este filme nos mostra como o olhar não preparado, privado, portanto, de uma visão acolhedora, não apreende as novas informações, porque não consegue sair do plano das negações, ao olhar o mundo como senhor absoluto , em vez de aprender a vivenciar a liberdade.
A questão do sagrado e do simbólico, absorvida por aquele povo, transforma-se em força pela luta da manutenção de suas invioláveis crenças e pela continuidade de sua própria história , à qual o homem está atado consciente ou inconscientemente.
O europeu, representado no filme como o que não consegue ver o outro (não todos), movido por interesses e ganância desenvolvidos em sua cultura, pensa esvaziar o valor cultural dos aborígenes, ao vencer-lhes no embate judicial ou ao construir um estabelecimento em lugar sagrado. A prova da resistência cultural é apresentada pela continuação da ida dos nativos ao lugar do sonho, (de sonhar o filho) reconstruindo o valor simbólico, mesmo no campo minado pelo dominador e sem recuar ou ceder às desconsiderações do outro.
A relação dos olhares: o olhar do lucro e o olhar da cultura cruzam-se em ambigüidades transformam-se, na verdade, em salvaguardas de uma cultura, ao colocar em alerta memórias dos tempos que hão de se repetir na (re)construção de uma nova história, pela articulação dos contrários.
Na representação cultural, as marcas históricas de um povo estarão sempre presentes.No filme duas histórias são enfocadas e levadas aos tribunais, mas só o tempo (o tempo da dominação) de uma delas, a do dominador, do ïnvasor”, irá ser levado em conta, já o tempo referente ao passado dos habitantes milenares daquela terra é esquecido. Prevalece a força, mas não morre a cultura, esta certamente irá-se intercambiar e se aliar a história de um outro povo miscigenado que irá se formar.
Para os nativos, a contagem do tempo corre à margem da que conhecemos, a desmontagem temporal evidencia uma postura diferenciada frente às coisas do mundo.
No centro de tudo está o homem e suas crenças, gerando uma força que se abre ao ciclo de uma possível metamorfose cultural e comportamental, apresentada pelo conjunto de imagens dinâmicas, não na forma e sim no conteúdo das ações exibidas.
Imagens de natureza mais espacial que temporal expõem o homem neste campo de embates,onde, superficialmente, existe só um vencedor.
A metamorfose e a simbiose de culturas marcam as diferenças na existência do outro, quando as diversidades das expressões culturais se aproximam ou se afastam e são permeabilizadas umas pelas outras, adquirindo um novo corpo vivo, levando o homem ao seu próprio encontro.
* Werner Herzog sabe como nenhum outro diretor explorar os limites das condições humanas. Nesta produção ele usa como palco uma extensão de terra desolada no coração da Austrália. Duas tribos de aborígenas, os Wororas e os Riratjingus, preservam suas lendas e cantos ancestrais. Eles entram em conflito com as leis da Austrália moderna e com os interesses de uma companhia que quer explorar urânio num de seus redutos sagrados: as terras onde sonham as formigas verdes.
Sônia Moura – UFF – 2007