[Do livro PALAVRAS CRÔNICAS, de Sônia moura}
Solitária, a gaivota pousou num pedaço de pau fincado à margem do rio. A tarde estava no fim. Os olhos cansados da jovem apaixonada percorreram as montanhas, seu suspiro profundo ecoou no ar, soltou-se do peito e alargou-se em pranto. As lágrimas jogavam-se descompassadas sobre as águas, que serpenteavam e corriam frenéticas à procura do mar.
Afastara-se do grupo propositalmente, agora parecia perdida. Agora? Não, se perdera há muito, muito tempo. Por que logo com ela, por quê?
A noite chegava, bela, com uma lua de fazer sonhar. Pernoitou à beira do rio, precisava descansar, pois bem cedinho seguiria viagem, urgia voltar àquele lugar. Na longa noite, Íris teve um sonho revelador. Ele ainda estava lá, tinha certeza: ele ainda estava lá. E se já tivesse outra? Tinha de arriscar. Foi o canto das aves que a fez despertar. Espreguiçou – se, esfregou os olhos ainda inchados do choro do dia anterior e bocejou calmamente.
O dia estava claro, isto era bom, o vento era leve, isto também era bom. Mochila às costas, Íris deu uma volta pelas beiradas do rio e partiu, deixando para traz o rio que bebeu suas lágrimas. Era hora de partir, ainda iria navegar por longos céus.
Vagarosamente, mas com firmeza, seguia em frente, o dia estava tão propício às andanças, ainda mais para alguém que trazia o peito cheio de esperanças, dúvidas, expectativas, amor e uma enorme e louca paixão. Há quanto tempo eles não se encontravam? O barulho do vento tirou-a de suas recordações e fez acelerar o jovem coração. O vôo fora tranqüilo.
Olhando aquele mar lá de cima, começou a cantarolar a bela canção”… da janela vê-se o Corcovado e o Redentor, que lindo! Quero a vida sempre assim, com você perto de mim, até o apagar da velha chama… “. Com o coração aos pulos, olhava para baixo e pensava como o encontraria. Sabia que ele gostava de voar, mas sua vida era o mar. Vou encontrá-lo, falou para si mesma, com a certeza dos amantes.
Todos sabiam que o namoro de Íris e Órion desagradava às duas famílias. Ambas achavam que não podia dar certo, eles pertenciam a grupos diferentes, viviam em mundos tão distantes… Logo que souberam do namoro trataram de mandar Íris para bem longe. Assim, para as famílias, logo tudo se resolveu, mas para os jovens não, prometeram lutar por seu amor, por sua paixão.
O cansaço e a ansiedade se misturavam, era chegada a hora do grande desafio. O sol ainda estava aceso, mas logo, logo daria lugar a uma lua bem cheia. Disseram à Íris que o sol e a lua são amantes que nunca conseguem se encontrar. – Que tristeza! – pensou a jovem apaixonada – um frio correu-lhe por todo o corpo.
Finalmente aportou naquela cidade tão linda e maravilhosa como o seu amor e lá se foi à procura da razão de ser de sua vida, daquele que a enchera de uma paixão lancinante. Procurou antigos amigos lá de Ipanema e disse-lhes que precisava encontrar Órion, não sairia dali sem falar com ele. – A nossa praia continua dez, falou alto.
– Órion? Disse um jovem que acabara de chegar – O Coió? – todos riram muito, só Íris não entendeu. – Por que o chamavam assim e por que estavam rindo?, perguntou. Hebe contou a ela o que estava acontecendo.
– Assim que você partiu, Órion, se pôs tão triste, calado, isolou-se, quase não sai mais para nadar ou mesmo para voar, você sabe que ele se aventura em vôos livres, então, muitos começaram a zombar dele, chamando-o Coió, o mesmo que tolo, apaixonado, ridículo. Mas pode ficar tranqüila, ele está a salvo, não deixo ninguém mexer com ele.
Íris não gostou do apelido, mas alegrou-se ao saber que ele não a esquecera. Queria sair àquela hora para procurar o amado, mas Hebe a aconselhou a ficar. Amanhã cedo, vamos até o barco de Nereu, ele sabe falar sobre o futuro, converse primeiro com ele, tenha calma.
A jovem disse que sim, qual o jeito? Já era bem tarde. Mas é sabido que o coração dos amantes não sabe e não quer esperar e Íris aventurou-se pela beira da praia com esperanças de que Órion aparecesse. Em vão. Fitou longamente o céu estrelado, mas não conseguia distinguir bem as constelações, céu de cidade grande é assim mesmo. Resolveu voltar para junto do grupo e acomodou-se.
Noite longa, insuportável, não conseguia pegar no sono. Hebe falava: – Dorme, menina, você não quer encontrar o seu amado com a cara amarfanhada, quer?, o sono acalma a pele, o coração e o corpo, dorme. Íris tentou.
Antes de a manhã despertar, Íris já estava prontinha para procurar Nereu, sabia que ele dormia pouco e ia cedo para o mar. Olha o Netuno, olha o Netuno, ela mostrava à amiga ainda sonolenta. Vamos, Hebe, antes que Nereu resolva ir para muito longe e você sabe que ele não gosta de ser incomodado, quando está em alto mar, lá,gosta de ficar em meditação absoluta, vamos.
Chegaram até o barco, foram bem recebidas por Dóris, esposa de Nereu, que lhes serviu um café da manhã delicioso, todos se deliciaram com a torta de peixe, uma iguaria que era sempre servida na primeira refeição, só Íris dispensou a torta.
O barco acariciava o mar, o desenho feito pelas montanhas dava àquela cidade um encanto ímpar, vista do mar então… Era uma cidade escandalosamente bela. Rio – um engano até romântico – Rio de Janeiro, onde quem manda o ano inteiro é o mar. Por instantes, um silêncio ensurdecedor tomou conta do barco, todos pareciam hipnotizados pela beleza da Cidade Maravilhosa.
Ansiedade no olhar, olhos presos no mar à procura de uma resposta, de uma presença, Íris era a verdadeira imagem dos apaixonados Nereu, quebrando o silêncio, dirigiu-se a Íris: -Minha filha, sei que seu coração está aflito, vamos conversar. Retiraram-se para o reservado na parte inferior do barco. Hebe e Dóris se entreolharam, sabiam que Nereu não escondia a verdade. Hebe temeu pela amiga, ela estava tão fragilizada… — Hebe, fique tranqüila, tudo vai sair bem. — Estou torcendo muito por eles, mas você sabe, Dóris, a situação de Íris e Orion é muito difícil, eu diria (quase) impossível. Mas o que fazer se eles se amam?
O azul daquele dia era prenúncio de que algo muito especial estava para acontecer, o mar parecia estar vestido para uma grande festa, o sol se espalhava e dava o tom dourado ao dia, à água, o mar era um véu ondulante, salpicado pela espuma branquinha das ondas. Nereu e Íris subiram ao convés…
Nereu levantou os braços e começou a proferir palavras indecifráveis O dia ficou nublado, o vento e o mar agitaram-se. O que estava acontecendo? Até agora estava tão calmo, o céu totalmente azul, o vento muito leve.
Em poucos minutos tudo voltou à calma e Orion, nadando com a desenvoltura de sempre, veio à tona ansioso, gritando por sua doce “gaivotinha”. Íris chorava e sorria, Hebe arregalava os olhos e, tentando conter o choro, abraçou a amiga, finalmente eles se encontraram. Conhecia o senso de justiça e a sabedoria de Nereu, tinha certeza de que a partir daquele dia tudo estava resolvido, só não sabia dizer como. Dóris procurou o olhar do marido, Íris jogou-se ao mar, os amantes se tocaram com doçura.
Somente o grande profeta sabia o que estava para acontecer à gaivota que se apaixonara pelo peixe voador. A paixão, louca paixão, não vê diferenças, chega, se instala e… pronto, assim fora com os dois jovens.
Na baía da Guanabara, bem perto das ilhas Cagarras, Íris encontrou o seu “peixinho” querido. E, era lá mesmo, naquela ilha, da qual o barco se aproximava, que o destino de ambos iria ser selado. Assim o dia foi findando e a noite foi chegando majestosa.
Sem que a âncora fosse jogada ao mar. a embarcação parou. Nereu levitou sobre as ondas, colocou sua mão sobre a cabeça dos amantes, e uma névoa prateada envolveu-os. Levemente a névoa foi subindo, subindo, até chegar aos céus. Ninguém disse uma só palavra. Hebe despediu-se dos amigos e voou para a praia.
Uma espécie nunca vista antes, dois peixinhos que também podiam voar, surgiram na noite prateada. Estrelas brilhavam no céu do Rio de Janeiro, Nereu e Dóris foram descansar, sabendo que os amantes nunca mais iriam se separar.