O Quadro da saudade

No fundo do quintal, descobriu um quadro, jogado num canto do celeiro abandonado, dentro de um baú mais abandonado ainda. A poeira praticamente tirava do alcance dos olhos a delicada pintura que ali dormia, por muitos e muitos anos, sem ser incomodada por ninguém.
Amarrou algumas folhas caídas das árvores, naquela tarde de outono, transformando-as em espanador, apanhou o quadro, e, com toda a calma que o campo nos dá graciosamente, começou a espantar a poeira ali tão bem acomodada. Algumas manchas, que bem poderiam ser fezes de animais, se faziam presente, como se fossem tintas intrometidas a invadir a pintura singela.
O sol foi subindo bem devagar, para que pressa? As mãos do homem, levemente seguravam o quadro e o espanador de folhas, o qual balançava como se este estivesse preso a galhos com dedos. A poeira resistia, mas, como não tinha outro jeito, foi saindo e procurando novos lugares para se acomodar, poderia ser em cima do ancinho esquecido no canto do celeiro ou ela poderia acomodar-se por mais um bom tempo sobre a tampa do baú de onde saíra o quadro.
Sempre fora do campo, mas a vida o levou para a cidade. Trabalhou, viveu, mas disse que não morreria sem voltar para lá. Voltou para o útero da mãe-terra. Agora precisava acordar tudo o que ficara tanto tempo adormecido.
Começara por sua alegria, estava despertando aquela imagem, do mesmo modo que seus olhos iam sendo despertados para admirar as duas crianças a correrem pelo campo, entre flores pequeninas, cujos traços finos e leves de algum pintor dera forma e imortalizara. Admirou a beleza e a singeleza daquela pintura, depois, voltou sua curiosidade para a parte posterior do quadro e ali estava o nome do autor da pintura e a data, de um tempo bem distante.
O homem que estava agora naquela casa de campo, conhecia os bons pintores e sabia que aquele era um quadro valioso, poderia mandá-lo a uma avaliação minuciosa, sabia que ganharia muito dinheiro e, ao mesmo tempo, atrairia muitos curiosos para a sua paz que agora o inundava. Não, ele não queria isso, queria amor, tranqüilidade e sossego, e isto, a beleza daquela imagem já trazia para ele e amenizava muito da sua saudade.
Pendurou-o na parede da sala, em meio a outras pinturas, sem nenhum valor de mercado.

Ali os dois ficariam contemplando os mistérios da saudade.

[Do livro A SAUDADE MATA A GENTE, de Sônia Moura]

Brincadeira de Criança

 BRINCADEIRA DE CRIANÇA  (Autoria: Sônia Moura)

Brincadeira de Criança

Já sem vontade de ficar presa a nomes complexos de muitas teorias e de muitos teóricos, lembrei-me de que hoje é sábado, o dia não está tão bonito, como gostamos nós, os cariocas, falta-nos o astro – rei, mas ainda assim, pensei: queria estar em outro lugar, fazendo outras coisas.
Tentei salvar-me, relembrando os versos gostosos do poema “Dia da Criação” do poetinha. Salve, Vinicius de Morais, … porque hoje é sábado, tanto coisa acontece . Mas, com todo o respeito que merece o nosso poeta, foi pouco. Eu precisava de mais, muito mais, precisava ir para bem longe.
Então, antes que a revolta tomasse conta de todo este meu ser, voltei-me para os versos da brincadeira de criança, era mais ou menos assim, um falava e o outro respondia:

“ Hoje é sábado, pé de quiabo
Amanhã é domingo, pé de cachimbo
O cachimbo é de ouro, que dá no touro
O touro é valente e dá no tenente
O tenente é fraco e cai no buraco
O buraco é fundo do tamanho do mundo!”

Como sou a leitora implícita, vou atualizar a narrativa: (risos)

“Hoje é sábado, pé de quiabo

Hoje é sábado, dia para escorregar mansamente pelos braços do ser amado, com meiguice e depois ser presa por estes mesmos braços, com todo o vigor do animal que não quer deixar escapar a sua presa, e, ao mesmo tempo, ser beijada com a sofreguidão de um vendaval e com a delicadeza de um beija-flor colhendo mel.

E amanhã?

“Amanhã é domingo, pé de cachimbo”

Então, hoje, podemos ficar na cama e nos amarmos até a exaustão, amanhã é domingo, vamos passear de mãos dadas, olhar a natureza e quem sabe? No meio de um jardim, você possa me mostrar um pé de cachimbo ou, em outra hora, mostrar-me o cachimbo de pé?

E o cachimbo?

“O cachimbo é de ouro, e dá no touro”
Pense rápido, menina, este é o desafio: na cidade grande onde encontrar o touro? Não sei, mas, serve uma vaca? Em Copacabana tem muitas expostas no calçadão? Pode. Então, vou escolher a que está sentada numa cadeira de praia, tomando uma gostosa água de coco e convidar você para sentar-se nesta cadeira comigo.

E o touro?

“O touro é valente e dá no tenente”

O touro, na minha história, virou vaca, deixou a valentia de lado, voltou no tempo e só quer saber de paz e amor, e até ri para o tenente que passa correndo com o seu grupo, pelas ruas de Copacabana cantando, à frente de seus comandados: “Um dois, vamos correr/ o descanso vem depois”!

E o tenente?

“O tenente é fraco e cai no buraco”

Com esta vaca charmosa, não há quem resista mesmo, nem militar. O tenente, encantado, olha para a vaca e, coitado, cai no buraco.

E o buraco?

“O buraco é fundo do tamanho do mundo”

Volto a mim, ao computador, aos teóricos e às teorias, parece que fui eu quem mergulhou num buraco (pro)fundo, um buraco do tamanho do mundo, num buraco  da saudade e da recordação e me vi, mais uma vez, sem seus braços, , numa gostosa madrugada, enlaçadinhos um no outro, e você a me dizer baixinho: “Sou louco por ti, pequenina”!

(Do livro: A SAUDADE MATA A GENTE, de Sônia Moura)

brincadeira de criança

Auxílio – moradia

Vamos falar de números:

Todo parlamentar tem direito a receber o auxílio- moradia.

A Câmara vai gastar cerca de R$ 36,2 milhões com a reforma de 96 apartamentos funcionais, serão colocados nos apartamentos, entre outros, banheira de hidromassagem e triturador de alimentos.

A Coordenação de Habitação(*?) gasta 20% de seu orçamento com pequenos reparos nos apartamentos, 45% com serviços condominiais, como portaria, garagista e limpeza, inclusive nos 144 edifícios vazios, e 25% com manutenção de equipe Preve e água, os 10% restantes são de gastos com troca de eletrodomésticos e móveis.

E mais: Benefícios de moradia – Apartamentos funcionais – Na Câmara, 432 imóveis de 225 m². No Senado, são 72 apartamentos de 240 m², com as seguintes características: 3 quartos, escritório, sala, banheiros. Congresso fornece alguns móveis e eletrodomésticos.

Na Câmara, 224 imóveis estão ocupados e cerca de 200 estão em condições precárias (*?). No Senado, 69 estão ocupados e 3 precisam de reparos.

Auxílio-moradiaR$ 3 mil por mês na Câmara e R$ 3,8 mil no Senado, em valores brutos.

ATENÇÃO: Só 2,3% do Congresso abdicam do direito a apartamento funcional ou auxílio-moradia.

Agora, ainda sobre números, apenas algumas perguntas (há muitas outras)que não querem, não podem e não devem se calar, de jeito nenhum:

Qual o valor do salário mínimo?

Quanto ganha um professor rede pública?

Quanto ganha um médico da rede pública?

Quanto paga de aluguel, tirando do próprio bolso, claro, um cidadão “qualquer”?

E a prestação da casa própria, como faz o cidadão brasileiro para conseguir pagá-la?

Como consegue o cidadão, reles mortal, pagar o plano de saúde, embora já contribua a vida inteira para ter “benefícios”, entre eles, os que se referem à saúde?

Sei que qualquer brasileiro, aquele que paga suas despesas com o dinheiro suado, conseguido com seus esforços, saberá responder a estas questões e descobrirá estupefacto que tudo o que lhe foi ensinado sobre as questões matemáticas, desde como fazer uma conta, a mais elementar que seja, deve estar errado, muito errado!

Haverá alguma solução possível para estes confusos problemas de proporcionalidade?

 

A maior de todas as marcas: a vaidade

Com certo atraso, reconheço, assisti ao filme O Diabo veste Prada, que foi baseado num best-seller da norte-americana Lauren Weisberger, que dizem ter vivido situação semelhante. A história, todos já sabem: Andrea é uma jovem que se muda para Nova York a fim de tentar uma carreira como jornalista. Ela consegue um emprego na maior revista de moda da cidade, a Runaway, comandada pela cínica, cruel e poderosa editora Miranda Priestly, a qual inferniza a vida de todos que com ela trabalham e, lógico, a isto se submetem.

Confesso que não me surpreendi muito com o que vi, pois a busca da carreira bem sucedida está sendo estimulada a todo o momento e pelos quatro cantos deste nosso mundo pós-moderno, no qual valores e relações afetivas são basicamente descartáveis, porque não são revertidas em lucros e, deste modo, não interessam ao mercado de capitais.

Eu não sei qual a marca preferida pelo diabo, mas se fosse arriscar um nome, diria que é a marca denominada Vaidade, como bem mostra o protagonista, em um outro filme: O Advogado do Diabo. Sabemos que a vaidade é a porta de entrada para todos os males, ou, se preferirmos, de todos os pecados, sendo esta a marca registrada de todos os diabos que tentam pontilhar as vidas de todos nós, pobres mortais.

No filme, cada nova “secretária-fantoche”, que iria atender diretamente a toda poderosa Miranda Priestly, era denominada “A nova Emily”, estas marionetes, como tantas outras, são facilmente descartáveis, e para que tal não aconteça, bastará às detentoras deste título, deixarem-se manipular, uma vez que, quem não se enquadrar neste jogo de poder, sedução, dinheiro e marcas exuberantes, está fora! Está “out”! sem dó nem pena (eles não sabem o que isto representa).

Então, se você não quiser desempenhar na vida o papel da mais “nova Emily”, do mais novo fantoche, tendo que agir como um “cavalo desembestado” para satisfazer desejos de outros e também os seus desejos puramente materiais ou ainda ver sua vida “ sem controle” algum, cuide-se mais, olhe-se mais e ouça o que diz Zaratustra: “*…olhar a vida sem cobiça, e não como cães, com a língua de fora.”, salivando, à espera do toque de uma campainha, à espera de migalhas que alimentem, exageradamente, a nossa terrível vaidade. (*NIETZCHE, Friedrich. Assim falou Zaratrusta. São Paulo: Martin Claret, 2002 p. 102)

Sonhar é sempre bom!

Você pode contestar. Sonhar é sempre bom! Como assim? E quando eu tenho aqueles sonhos horrorosos e acordo com o coração batendo mais que liquidificador?
Ou quando sonho que estou devorando um sorvetão enorme e, ao acordar, me lembro que estou fazendo aquela dieta, pois preciso entrar no vestido novo? Até mesmo quando sonho de olhos abertos e, depois, nada se concretiza. É só decepção.
Ah, é um horror e vem alguém me dizer que sonhar é sempre bom, discordo.
Sim, sonhar é sempre bom, esteja você com os olhinhos fechados ou abertos, pois, se no lugar do sonho maravilhoso, você tem um pesadelo, isto é bom, saiba que, de alguma forma, você está sendo alertado em relação a algo a que precisa dar mais atenção. Não dizem que o sonho é um aviso? Acredite, é!
E sonhar acordado também é coisa dos deuses. Sim, é verdade, nem sempre os sonhos se realizam, mas, o que importa mesmo é que esta forma de sonho nos tira do chão, permitindo ao sonhador viajar em seus desejos, sonhando com um amanhã que será (ou poderá ser) melhor que o hoje.
Isto não é maravilhoso?