A moça e o touro

 Angelina era uma moça tão doce, mas tão doce, que alguns diziam que sua doçura chegava a enjoar. Mas Angelina era assim mesmo, parecia viver em outro mundo, não se enquadrava nos ditames dos novos tempos, que ela achava serem tão frios. E assim seguia a vida.
A moça resolveu que seria veterinária e estava certa. Escolhera a profissão certa, pois, se os humanos não a compreendiam, os animais pareciam não se importar nem um pouco com aquele seu jeito fora do tempo.
Angelina não se importava  muito com as questões da moda, só não abria mão do seu cordão, de onde pendia uma conta âmbar, que, diga-se de passagem, era linda mesmo.Presente da mamãe.
Angelina foi trabalhar no interior, servia às fazendas, ajudando bois, vacas, cavalos, enfim, ajudando a bicharada a viver melhor.
Na fazenda Rosa de Ouro, havia um touro que era lendário por sua braveza. Um dia a veterinária foi chamada para examinar Bloqueado, o touro bravo. Avisaram a ela que o bicho não era de brincadeira. Angelina sorriu e foi até lá.
A moça, mansamente, foi- se aproximando do animal. O touro bravo riscou o chão, bufou, babou, mas a veterinária continuou serena, enquanto dizia palavras suaves, cantarolava, sorria.
Foi aí que todos ficaram boquiabertos. Bloqueado foi amansando, amansando e Angelina chegou pertinho, o mel que escorria de suas palavras e de seu cantar, acalmaram o touro. A vida é mesmo cheia de surpresas. Bloqueado até permitia à moça montar em seu dorso e saía, mansinho, orgulhoso que só.Tornou-se famosa, todos queriam aquela doce menina cuidando de seus bichinhos.
Moral da história: Os animais entendem bem mais a bondade e a doçura que os seres humanos, pois estes, delas têm medo.

[Do livro CONTOS E CONTAS, de Sônia Moura]

Promessas

Um novo ano estava para começar e Mirella tomou uma decisão, estava segura e anotou na agenda: 1 – Suavizar as marcas do tempo e melhorar a pele; 2 – Clarear os dentes; 3 – Fazer exercícios; 4 – Passear mais; 5- Fazer aula de dança.
Fechou o caderno, precisava arrumar-se para ir ao cinema com as amigas.
Vestiu um vestido branco; calçou o sapato azul celeste; apanhou seu cordão com um conta azul turquesa e os brincos dourados e saiu.
O filme as fizera rir muito, saíram do cinema mais leves. Foram a um bar, sentaram-se ao lado de um casal de namorados que pareciam bem apaixonados. De repente chegou um homem e sentou-se com o casal que já estava conversando com Mirella e suas amigas. As apresentações foram feitas, o homem gostou de Mirella e, a partir daquele dia, começaram a namorar.
As marcas do tempo foram aos poucos tornando-se suaves, o sorriso estava mais radiante, os dentes pareciam brilhar mais; Mirella passou a movimentar-se muito, mesmo sem ir à academia, os finais de semana eram feitos para os mais interessantes passeios e um deles era dançar com Alfredo, o novo namorado e seu parceiro de dança.
O ano novo chegou e Mirella esqueceu-se totalmente de seguir os passos que anotara na agenda.

(Do livro CONTOS E CONTAS, de Sônia Moura)

ZUMBI DOS PALMARES (ou NA MARRA 2)

Já faz um bom tempo que, na MARRA , tentaram “civilizar” um negro batizado Francisco, mas que se imortalizou como ZUMBI, o Zumbi dos Palmares. O negro chamado Francisco aprendeu português e latim e ajudava na celebração da missa, cresceu forte e inteligente.
Aos quinze anos Zumbi foi para um lugar onde pudesse desfrutar do bem maior que a todos pertence: a liberdade. Neste lugar, logo se torna conhecido pela sua destreza e astúcia na luta. Chega aos vinte e poucos anos, como um estrategista militar respeitável, e, há um bom tempo, dizem que também, na MARRA, Zumbi tomou o comando do Quilombo de Palmares.
Talvez tenha sido num domingo, que um tal Domingos Jorge Velho foi chamado para organizar uma invasão ao Quilombo dos Palmares, onde viviam negros e brancos, não importava, eram aceitos no Quilomgo, todos os excluídos.
Em 6 de fevereiro de 1694 a capital de Palmares, Macaco, foi destruída e Zumbi ferido. Apesar de ter sobrevivido, foi traído por Antonio Soares e, surpreendido pelo cap. Furtado de Mendonça em seu reduto (talvez a Serra Dois Irmãos), na MARRA, mas na MARRA, mesmo, foi morto.
Cortaram-lhe a cabeça, salgaram-na, introduziram em sua boca um pênis, expuseram esta cabeça cortada em praça pública, tentando acabar com a crença de que Zumbi era imortal. Hoje se sabe que ZUMBI é imortal. Talvez sua imortalidade já comece pelo seu verdadeiro nome: ZUMBI, oriundo do africano quimbundo “nzumbi”, que significa algo próximo da palavra “duende”.
ZUMBI!ZUMBI!, guerreiro que dá orgulho aos descendentes da mãe África e a todos os brasileiros de bom senso, lutou por sua gente de pele negra, que no Brasil “clareou-se”, quando vieram os “mulatos”. Na MARRA precisavam branquear o povo, sem contar que tiraram dos negros uma de suas marcas da identidade, que estes traziam em lindos nomes africanos, com suas significações e simbologias. Mas não lhes tiraram o ânimo, por tanto, as almas.
Também, na MARRA, todos foram batizados;  na MARRA, a história escondeu muitas verdades sobre os negros e sobre suas lutas em prol da liberdade, pois os negros sempre fugiam em busca de sua liberdade, e, como se sabe, Quilombo não foi o único reduto dos negros fugitivos.
Na MARRA, por um longo tempo e até hoje, os negros são escondidos pelo não – discurso ou pela negação: “negro não é bonito, inteligente, honesto, limpo, não tem “boa aparência” e muitos outros “nãos”.” Tudo feito na encolha, na hipocrisia, assim, na MARRA, a negritude brasileira é anulada.
Na MARRA, tentaram e não conseguiram escravizar Zumbi dos Palmares, tentaram e não conseguiram apagá-lo da memória do seu povo. Não conseguiram, pois Zumbi, como qualquer ser, nasceu livre.
E esta é a verdade: ainda que , na MARRA , consigam escravizar o corpo de um ser, o que os donos de escravos não sabem é que, aquele que é verdadeiramente livre, jamais será escravo, pois terá uma alma eternamente livre, é o caso de ZUMBI DOS PALMARES – símbolo da resistência negra à escravidão, assassinado em 20 de novembro de 1695.

Ir e vir

Japão começa a controlar dados biométricos dos estrangeiros.

“ Tóquio, 20 nov (EFE).- O Japão começou nesta terça-feira a registrar os dados biométricos dos estrangeiros maiores de 16 anos que visitam o país, com a entrada em vigor de uma nova lei que endurece os controles de imigração em aeroportos e portos.

Segundo a agência “Kyodo”, o Japão é o segundo país, depois dos Estados Unidos, a introduzir um sistema para recolher dados biométricos. Os estrangeiros que entrarem no país serão fotografados e terão que tirar as impressões digitais.O Governo japonês alega que o objetivo é reforçar a luta contra o terrorismo internacional. Mas associações de advogados denunciam a utilização dos dados nas investigações criminais sem nenhum tipo de controle.Os dados pessoais vão ser recolhidos por equipamentos fabricados por empresas japonesas especialmente para esta tarefa.

A nova Lei para Controle da Imigração e de Refugiados foi aprovada em maio e entrou em vigor nesta terça-feira, 20 de novembro.”

Vejam, senhoras e senhores, tudo começa assim, eles sempre alegam que é para o bem, que é para defender a Pátria, o povo, a família, a fé, mas de verdade mesmo, o que eles querem é manter o poder, o dinheiro, o território, as riquezas.

Alguém, rápido, salve a liberdade, ao menos a de ir e vir. 

O Quadro da saudade

No fundo do quintal, descobriu um quadro, jogado num canto do celeiro abandonado, dentro de um baú mais abandonado ainda. A poeira praticamente tirava do alcance dos olhos a delicada pintura que ali dormia, por muitos e muitos anos, sem ser incomodada por ninguém.
Amarrou algumas folhas caídas das árvores, naquela tarde de outono, transformando-as em espanador, apanhou o quadro, e, com toda a calma que o campo nos dá graciosamente, começou a espantar a poeira ali tão bem acomodada. Algumas manchas, que bem poderiam ser fezes de animais, se faziam presente, como se fossem tintas intrometidas a invadir a pintura singela.
O sol foi subindo bem devagar, para que pressa? As mãos do homem, levemente seguravam o quadro e o espanador de folhas, o qual balançava como se este estivesse preso a galhos com dedos. A poeira resistia, mas, como não tinha outro jeito, foi saindo e procurando novos lugares para se acomodar, poderia ser em cima do ancinho esquecido no canto do celeiro ou ela poderia acomodar-se por mais um bom tempo sobre a tampa do baú de onde saíra o quadro.
Sempre fora do campo, mas a vida o levou para a cidade. Trabalhou, viveu, mas disse que não morreria sem voltar para lá. Voltou para o útero da mãe-terra. Agora precisava acordar tudo o que ficara tanto tempo adormecido.
Começara por sua alegria, estava despertando aquela imagem, do mesmo modo que seus olhos iam sendo despertados para admirar as duas crianças a correrem pelo campo, entre flores pequeninas, cujos traços finos e leves de algum pintor dera forma e imortalizara. Admirou a beleza e a singeleza daquela pintura, depois, voltou sua curiosidade para a parte posterior do quadro e ali estava o nome do autor da pintura e a data, de um tempo bem distante.
O homem que estava agora naquela casa de campo, conhecia os bons pintores e sabia que aquele era um quadro valioso, poderia mandá-lo a uma avaliação minuciosa, sabia que ganharia muito dinheiro e, ao mesmo tempo, atrairia muitos curiosos para a sua paz que agora o inundava. Não, ele não queria isso, queria amor, tranqüilidade e sossego, e isto, a beleza daquela imagem já trazia para ele e amenizava muito da sua saudade.
Pendurou-o na parede da sala, em meio a outras pinturas, sem nenhum valor de mercado.

Ali os dois ficariam contemplando os mistérios da saudade.

[Do livro A SAUDADE MATA A GENTE, de Sônia Moura]

Brincadeira de Criança

 BRINCADEIRA DE CRIANÇA  (Autoria: Sônia Moura)

Brincadeira de Criança

Já sem vontade de ficar presa a nomes complexos de muitas teorias e de muitos teóricos, lembrei-me de que hoje é sábado, o dia não está tão bonito, como gostamos nós, os cariocas, falta-nos o astro – rei, mas ainda assim, pensei: queria estar em outro lugar, fazendo outras coisas.
Tentei salvar-me, relembrando os versos gostosos do poema “Dia da Criação” do poetinha. Salve, Vinicius de Morais, … porque hoje é sábado, tanto coisa acontece . Mas, com todo o respeito que merece o nosso poeta, foi pouco. Eu precisava de mais, muito mais, precisava ir para bem longe.
Então, antes que a revolta tomasse conta de todo este meu ser, voltei-me para os versos da brincadeira de criança, era mais ou menos assim, um falava e o outro respondia:

“ Hoje é sábado, pé de quiabo
Amanhã é domingo, pé de cachimbo
O cachimbo é de ouro, que dá no touro
O touro é valente e dá no tenente
O tenente é fraco e cai no buraco
O buraco é fundo do tamanho do mundo!”

Como sou a leitora implícita, vou atualizar a narrativa: (risos)

“Hoje é sábado, pé de quiabo

Hoje é sábado, dia para escorregar mansamente pelos braços do ser amado, com meiguice e depois ser presa por estes mesmos braços, com todo o vigor do animal que não quer deixar escapar a sua presa, e, ao mesmo tempo, ser beijada com a sofreguidão de um vendaval e com a delicadeza de um beija-flor colhendo mel.

E amanhã?

“Amanhã é domingo, pé de cachimbo”

Então, hoje, podemos ficar na cama e nos amarmos até a exaustão, amanhã é domingo, vamos passear de mãos dadas, olhar a natureza e quem sabe? No meio de um jardim, você possa me mostrar um pé de cachimbo ou, em outra hora, mostrar-me o cachimbo de pé?

E o cachimbo?

“O cachimbo é de ouro, e dá no touro”
Pense rápido, menina, este é o desafio: na cidade grande onde encontrar o touro? Não sei, mas, serve uma vaca? Em Copacabana tem muitas expostas no calçadão? Pode. Então, vou escolher a que está sentada numa cadeira de praia, tomando uma gostosa água de coco e convidar você para sentar-se nesta cadeira comigo.

E o touro?

“O touro é valente e dá no tenente”

O touro, na minha história, virou vaca, deixou a valentia de lado, voltou no tempo e só quer saber de paz e amor, e até ri para o tenente que passa correndo com o seu grupo, pelas ruas de Copacabana cantando, à frente de seus comandados: “Um dois, vamos correr/ o descanso vem depois”!

E o tenente?

“O tenente é fraco e cai no buraco”

Com esta vaca charmosa, não há quem resista mesmo, nem militar. O tenente, encantado, olha para a vaca e, coitado, cai no buraco.

E o buraco?

“O buraco é fundo do tamanho do mundo”

Volto a mim, ao computador, aos teóricos e às teorias, parece que fui eu quem mergulhou num buraco (pro)fundo, um buraco do tamanho do mundo, num buraco  da saudade e da recordação e me vi, mais uma vez, sem seus braços, , numa gostosa madrugada, enlaçadinhos um no outro, e você a me dizer baixinho: “Sou louco por ti, pequenina”!

(Do livro: A SAUDADE MATA A GENTE, de Sônia Moura)

brincadeira de criança

Rio (-mar) de Janeiro

Numa perfeita comunhão com a natureza,

Docemente, meus pés seguem beijando a areia

E embora o dia esteja tão nublado

Uma nesga de sol apareceu

Para alegrar meu rosto.

Caminho olhando o mar da minha terra

Abençoada terra!

Mesmo com todas as mazelas e

Ainda que digam que tudo está acabado

Para o Cristo Redentor tenho rezado

Para que todos estejam errados.

Olho para céu acinzentado

Depois levo meus olhos marejados

Até as curvas montanhas açucaradas

Deste Rio de Janeiro, de fevereiro… e

Também do ano inteiro.

Nem mesmo o véu enevoado

Que sobre a cidade se estende

Consegue esconder toda beleza

De um Rio que o mar, o ano inteiro

Beija, beija, beija…

Na marra I

Na marra 1

Na praça da Aclamação (hoje, Praça da República), um grupo de militares, liderados pelo marechal Deodoro da Fonseca, deu um golpe de estado e depôs o Imperador D.Pedro II, em 15 de novembro de 1889.
É…, já faz um bom tempo que, na marra, aconteceu de o Império dar vez à República.

7

7 são os pecados capitais, 7 são as cores do arco-íris
7 são as notas musicais, 7 são dos dias da semana
7 são as maravilhas do mundo antigo, 7 são as artes

Isso, todo mundo sabe.

Mas o que vocês não sabem é que adoro pintar o sete,
Este número mágico, o quarto número primo,
Mas que, em minha lembrança de menina,
Sobre umas férias de verão, à beira mar,
Assim como eu, titubeando pelo corredor,
Meus pensamentos iam e viam
Com uma vontade louca
De bater à porta do quarto número 7
Onde dormia um lindo menino
Quase fui até lá,
Mas um anjo de plantão,
Na hora errada gritou:
Quanto desatino!
E, eu assustada e com as faces rosadas,
Disfarcei, dizendo,
Vim olhar para o número 7 da porta, primo!

Grátis

Do livro ENTRE BEIJOS E VINHOS, de SÔNIA MOURA

Passeando na praça abraçados
Parecíamos de fato namorados
Eu aquecia sua mão macia
Nos beijamos tão cheios de saudade
Que se não fosse arriscado eu sonharia

Hoje, longe, fecho os olhos e penso em você
No seu jeito tão calmo, no seu carinho infindo,
Vejo esse sorriso de que eu gosto tanto
Que me prende com todo esse encanto
E me faz sorrir também

São essas coisas que nos fazem bem
E que não custam dinheiro,
Não custam nada!

(Este poema foi escrito num tempo de
grande saudade.)