Hoje, terminei de ler o belo romance de Andrea Camilleri – O Rei de Girgenti , enquanto a história recua no tempo como realidade amarga, cruel, doentia, a fantasia se apresenta em tintas de ironia e o sobrenatural alimenta ainda mais a fantasia e remexe as certezas da realidade, e é assim que a realidade, a fantasia e o sobrenatural se esbarram e se complementam durante a narrativa. Camilleri ambienta sua história em um lugar imaginário[1], mas baseia-se em fatos verídicos sobre a vida de um homem chamado Zósimo.
Embora a Europa já se embalasse em braços e abraços Renascentistas, a pequena vila retratada no romance estava parada no tempo, vivia sob os ditames sociais da Idade Média, então, sem parar no tempo, o autor (re)escreve a história, retratando –a com boas doses de humor, simplicidade, e por vieses escatológicos, sem nenhuma sutileza.
Este camponês e líder popular, indignado com a enorme desigualdade social, com a fome e com a injustiça, ousou desafiar e ridicularizar o alto clero e a Inquisição, destronou a nobreza feudal e destituiu autoridades vigentes, deu de comer a quem tinha fome e tentou distribuir terras aos camponeses e, por pouco tempo, reinou em Girgenti. Este sábio e corajoso homem incomodou muita gente.
Simplificando, mas não diminuindo o valor desse romance, esta recontagem com base histórica e recheio fictício (mas assim não é feita a História?) nos faz concluir que tudo muda, mas tudo continua igual, pois, na realidade, ao final da história (quase) sempre vencem os suseranos, enquanto os vassalos são encurralados e amordaçados, com os mãos e pés atados.
Desse modo, como soe acontecer, Zósimo, aquele que pretendia dar vez e voz aos necessitados, morre na forca ou… sai voando em sua comerdia[2] . Cabe ao leitor decidir.
[1] Sicília ficcional, perto de Montelusa (Depois, Girgenti).
[2] Comerdia (no romance = pipa, pandorga, papagaio,arraia).