(Sônia Moura – UFF)
Parte III
II – LIÇÕES DE MESTRES (escritores e cineasta)
Assim, chegamos a Humberto Mauro e à sua criação ARGILA, filme que tem a forte marca do nacionalismo – redesenhado pelo prisma político da era Vargas e pelo olho mágico do cineasta.
Características que compõem e influenciam autores e cineastas no registro artístico do nacionalismo e de seu caráter ideológico, aparecerão expostas tanto pelos segmentos literários (Romantismo/ Modernismo) como pelo Cinema e irão se confrontar, defrontar ou se identificar a todo momento.
São discursos (o literário, o cinematográfico e, contemporaneamente, o televisivo) pontuados pela produção do imaginário social, reprisando imagens retiradas do ambiente social e, assim “a ideologia as reproduz, mas transformando-as num conjunto coerente, lógico e sistemático de idéias que funcionam em dois registros: representações da realidade e como normas e regras de conduta e comportamento”[CHAUÍ, Marilena de Souza. “O discurso competente”. In: Cultura e Democracia. São Paulo: Cortez, 1989, P.175.)
A recuperação das raízes, mostrada no filme Argila, é uma releitura fílmica sobre o nacionalismo, muito próxima da visão Romântica a qual promove a volta ao nosso passado histórico, tendo como principal “ator” o índio e sua cultura contrapondo-se à cultura européia, especialmente à cultura do colonizador português.
Ao mesmo tempo, o filme de Humberto Mauro se aproxima da visão nacionalista do Modernismo: o índio não está idealizado e sim integrado ao meio social e natural – pois – , embora no Estado Novo se privilegiasse a personificação do novo, da originalidade, o passado não é descartado, porque o passado é vivo, o passado é novo, e o cinema, então, coloca em cena estes dois tempos: presente e passado.
No filme, a imagem do índio (ou da caricatura dele) fomentando o desejo da “alma nacional”, investimento ideológico do Estado Novo, coaduna-se com a “cor local” do Romantismo e com o “Tupi or not Tupi” do Modernismo, é na verdade a imagem dos homens novos – representa todos os brasileiros, representa o governo: Vargas: Homo Magus que domina e encarna as forças inconscientes da “alma nacional”.
No Brasil Romântico (1a. geração – prosa), “não havia escravidão, não havia conflitos, não havia problemas sociais”. Em Argila os problemas sociais, especialmente, no que tange às questões trabalhistas, já estão “resolvidos”, tudo e todos (con)vivem em harmonia. É desenhada a unificação das esferas políticas e sociais, seguindo o comando ideológico do regime político vigente. Em ambos os casos, ao não falar dos problemas sociais e políticos, o que se faz é um recorte subjetivo e idealizado da realidade brasileira, da pátria perfeita.
A Era Vargas trabalha com a imagem do nacionalismo não só através da imagem cinematográfica, mas também através da imagem construída pelo discurso escrito ou falado. O regime político de 37 apropriou-se do discurso Romântico e Modernista da literatura, moldou-o às suas ideologias políticas, que transparecerão com clareza no filme Argila – fio condutor a multiplicar, certamente, os ideais e as idéias do Estado Novo.
Outro ponto a ser ressaltado na questão do aproveitamento dos discursos literários pelo cinema, neste filme, é a construção da mulher Romântica – inatingível, inacessível – e a mulher do Modernismo – dinâmica, independente.
Reunindo estas características, a personagem principal, no filme, é patroa (Luciana) – recheio perfeito para a marcação de ideologia do trabalhismo.Uma patroa (mulher) que às avessas cumpre o papel do homem Romântico, ao renunciar ao seu amor, capaz de abrir mão de um grande amor para não fazer a pobre menina (a noiva de Raul ) sofrer, para não desagregar a tão bem construída família brasileira.
Sendo uma mulher moderna ( e a visão Modernista), poderemos vê-la como: mulher liberada (“até” fumava), patroa, empresária e, também é construída a imagem da mãe dos pobres (personificando e reprisando a imagem de pai dos pobres– Getúlio Vargas).
O trabalhador e o trabalho, sempre enaltecidos durante o período Vargas, são mostrados em ação, sempre em clima de alegria e de harmonia com o ambiente, com o patronato e principalmente, consigo mesmo – com o próprio trabalhador.
Falando sobre um Brasil “”contente””, privilegiando um modelo de relações sociais e trabalhistas, o filme Argila desenha o Estado através de suas relações econômicas e políticas, para tal, Humberto Mauro usa o próprio cotidiano, afastando dele qualquer forma de ambiguidades e conflitos, que são desfeitos pelo olhar diretor, pelo olhar do poder, pelo olhar do escritor e concomitantemente e do espectador desavisado.
A natureza brasileira, exaltada pelos Românticos, é a representação da beleza brasileira; é apresentação do Brasil; é cenário e com os Modernistas, a natureza dialoga, ironiza, participa. No filme Argila, a natureza desempenha o duplo papel de valorização do nacional e de cenário, há, portanto, a reprise da visão Romântica deste elemento.
Ironia, humor, piada e paródia indicam o senso crítico dos Modernistas, que “zombam” da arte tradicional e das figuras artísticas eminentes do passado. Humberto Mauro usa o humor para mostrar o olhar zombeteiro que o estrangeiro lança sobre o patrimônio étnico nacional, quando o diplomata se refere aos iletrados como “bugres” ou quando o homem letrado desvaloriza a língua “nacional”, a língua do povo, tão valorizada por Românticos e Modernistas, e pela ideologia da Era Vargas – cada um a seu modo.
Do folhetim – precursor do movimento Romântico, “novelas” publicadas diariamente em capítulos, nos jornais – ao folhetim televisivo; a difusão do nacionalismo, a busca incessante da identidade continua a nos envolver, no entanto, como afirma Antônio Cândido: “O caráter nacional não se procura, não se inventa, não se escolhe; nasce espontaneamente, bebe-se com o leite da vida, respira-se no ar da pátria”. As ideologias, o que é transformado em senso comum, os esforços das elites, dos poderosos, a se confirmarem as palavras do Mestre Antônio Cândido, lograrão êxitos perenes?