RASTOS, RESTOS E ROSTOS (por SÔNIA MOURA)
Vivera em tantos lugares, visitara tantos países, vivera tantos amores, nem ela saberia contabilizar tantas vivências. Oitenta anos, oitenta anos, como o tempo passa!
Catarina sabia que o tempo é apenas um representativo da realidade e que o livro, que conta esta história, é feito por meio de uma concentração de imagens de múltiplos significados. O tempo é sempre enigmático, a história do tempo é enigmática.
Durante toda a vida, há passagens do tempo que se fazem demasiadamente presentes, enquanto outras lembranças servem para abreviar a passagem da vida e outras, ainda, ficam esquecidas no fundo do baú, num enorme isolamento, servindo como ponto de equilíbrio entre o ontem e o hoje.
Catarina abriu a janela do tempo e contemplou-se, refez o percurso da vida e descobriu que, por onde passou, deixou rastos nas fontes masculinas, nas fendas das colinas, nos sonhos de menina, nas saudades das ausências e nas memórias das presenças.
Embriagou-se, salvou-se, armou-se, desarmou-se, doutorou-se, lutou, amou, foi amada, sofreu, felizou – viveu! Mas, o importante mesmo é que de tudo ficaram restos.
Tudo em sua vida foi ardor e foi amor, agora, nesta reconstrução do tempo aos oitenta, no meio de lágrimas e palavras não-ditas, ela tenta e tenta encontrar rostos. Fecha os olhos e os vê suaves, em forma de almas suspensas, doces, obscenas, amenas, magoadas, sensuais e amadas.
Num espaço imutável, em forma de um colar de contas multicores a falar de amores, de sabores, de odores, de sons e de horrores, o tempo se apresenta soberano, proclamando o indizível.
O tempo não envelheceu, apenas eu envelheci e hoje vivo entre rastos, restos e rostos, concluiu Catarina.
(Da obra: CONTOS & CONTAS de Sônia Moura)