Trabalho apresentado por Sônia Moura – Congresso “Sobre olhares” – UFF/ agosto/2006

Para muitos, o olhar do visionário pode-se apresentar de forma obscura no que diz respeito à representação da realidade, pois este olhar circula por um universo misterioso e hermético, que o olhar de outros nem sempre consegue desvendar.
Os diferentes aspectos destas visões em chamas vão-se revelando ao visionário na medida em que este ser privilegiado não impõe coordenadas ou ordem àquilo que é olhado, fazendo com que o real estabelecido perca o equilíbrio e permita o encanto de revelações significativas, assim como o fazem as linguagens poéticas e proféticas, uma vez que entre o olhar e a palavra do visionário flui um íntimo e consagrado diálogo.
Um número ilimitado de experiências, nascidas das realizações de vivências criadas por estes poetas ou profetas – recriadores de sonhos, de fantasias, do tempo e do espaço – estas experiências surgem na forma de representações artísticas, por exemplo, a representação dos ritos e a consagração do mito plantados num mundo nem sempre reconhecido por nós, simples mortais, porque, verdadeiramente, este mundo reflete a imagem de muitas ausências.
Quando se tenta abarcar a realidade em toda a sua plenitude, pode-se ficar condenado a uma espécie de solidão. Aquele, a quem são permitidas as iluminações, alcança uma transcendência que o desviará de um destino terrestre e concreto, o que pode ser entendido como uma difícil solidão.
A primeira marca desta transcendência está acoplada à questão da temporalidade, que por sobrelevar muitos caminhos, transforma também a questão espacial e pela fusão modificadora destes elementos, a difícil solidão converte-se na mais pura liberdade.
As revelações mostradas ao visionário, e por ele a outros desvendadas, colocam-no em nosso mundo com a roupagem de divindade, uma vez que, suas visões provocam um olhar afastado das visões convencionais, então, a progressiva perda da realidade captada por este deus “adorado e excluído” enseja-nos pensar no não pensado.
A duplicidade pepassa toda a configuração do olhar visionário: o dito e o não dito, o visível e o invisível, o começo e o fim, o real e o imaginário, o possível e o impossível, o simples e o complexo, o deus e o diabo, o som e o silêncio, o coerente e o incoerente, o consciente e o inconsciente, o consistente e o inconsistente, o sagrado e o profano.
A partir daí, a presença do duplo, revelada pela palavra e pelo olhar dos visionários, projeta-se, por vezes, pela “metamorfose” em um outro que falará pela boca do visionário, alargando os caminhos dos mistérios, porque um deles, naquele momento estará fragmentado pela influência oculta da presença de um outro.
Deusas secretas, as palavras dos iluminados se apresentam na dicotômica fronteira do mostrar-se a todos e revelar-se a poucos, lançam-se no espaço e dão voz ao olhar. Por serem dotadas de uma magia infinda., esculpem, com tinta ou grafite, o que os olhos vêem, ou melhor, como os sentidos destes escolhidos percebem. Mostrando a tranqüilidade de um beija-flor e a agilidade de um felino. Estas palavras, inteiramente nuas, negam sentidos habituais, destronam significados, criam e recriam metáforas, substituem a noção de verdade pela noção de verossímil, trabalham o significante do signo, enfim, promovem a revolução.
Os “iluminados” incitam o imaginário por suas posturas ambivalentes, sob o efeito do momento sagrado, são eles verdadeiros artistas criam e recriam idéias, palavras, imagens; os profetas conduzem seus rebanhos pela proposta de reformulação da ordem ou da desordem; os xamãs, os pajés, os pais-de-santo e guias espirituais, invocam os poderes sobrenaturais para servirem de intermediários entre estes e os seus.
Germe do mundo, cíclica e adorada, a semente (matriz)ao metamorfosear-se em vegetal recebe todas as homenagens pela ocasião da colheita. No paraíso foi através do fruto, produto do vegetal, que o pecado e o pecador se encontraram e conheceram a ira do Senhor. Alguns ritos profanos, num desdobramento fantástico de novas “leituras”, transformam-se em ritos religiosos por ser impossível apagar a imaginação, assim também a expressão autêntica da visão vive das transferências que se estabelecem entre este e o outro plano.
Tendo como mediadora as diversas demonstrações culturais, o sagrado e o profano unem (mesmo quando fingem se afastar) para ratificar os poderes concedidos aos visionários. Os mistérios da fé, os cânticos (religiosos ou profanos), os ritos, os mitos, os símbolos e a sua perpetuação, mesmo quando sujeitos a toda gama de modificações, colocam o homem em contato com o cosmogânico, com o ovo –gênese do mundo, com a realidade primordial, com a multiplicidade dos seres, com a imagem do mundo e com a sua própria imagem ainda não desvendada.
O duplo barroco emoldura a definição atribuída ao visionário, enquanto a estética simbolista desenha-lhe o olhar e a arte surrealista confere-lhe a primazia de todas as manifestações do subconsciente, das imagens e a faculdade de se expressarem livremente, deixando correr livre o pensamento na sua forma espontânea e irracional.
Guardião da palavra e do olhar , assim como o tempo e o seu divino regresso, mensageiros da memória do mundo, em suas iluminações, o visionário tenta tirar o homem do seu isolamento e do silêncio de um bosque submerso, para que este possa ter o encontro inesperado e presenciar o diálogo entre a sanidade e a loucura.
Apoiados no olhar do visionário, somos levados à presença dos deuses para que possamos participar da representação do imaginário e de sua realidade fundamental: o encontro com os nossos segredos; como os que estão contidos nos arquétipos ancestrais.