CENAS DE UM CASAMENTO

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Enlaçando o social, o econômico e o religioso, um dos mais conhecidos rituais- o casamento –  é a representação do novo e do velho no ciclo repetitivo da vida e das condições superficiais e também profundas das relações familiares.

Para dar a impressão análoga da vivência participativa da vida familiar, através de configurações significativas presentes em qualquer ritual, os elementos colocados em cena –personagens (noivos, padrinhos, convidados, sacerdote), música, figurinos, risos, lágrimas, flores, igreja e fé- nos transportam para a simbolização emocional, exprimindo alegria, ansiedade, medo, dúvida, desejo, razão, moral e tradição, símbolos desse rito de passagem.

Por sua dinâmica imagística, a representação desse jogo social se manifesta em expressões, que se mostram ou se escondem,  para, como num espelho,  mostrarem o reflexo do que vai nas mentes prenhes de emoções, ainda que estas estejam em desalinho. Personagens são colocados lado a lado, assim, a distribuição espacial representa as estreitezas sociais, conceitos e preconceitos que se esbarram no palco da vida, a todo momento.

Tudo no cenário de um casamento aponta para as marcas das velhas- novas relações matrimonias, o que irá se reprisar em cada nova cerimônia, em cada novo casamento.

O espaço temático é estimulado pelo embate entre o branco (vestido da noiva), o negro (o terno do noivo) e o colorido do vestuário de padrinhos e convidados, pois a mistura de cores ratifica a intensidade dos desejos que parecem mover-se também em campos estreitos, limitados, porém muito bem determinados, ratificando os papéis sociais estabelecidos, a partir do “unidos para sempre”.

Quando todos os olhares se voltam para a noiva, é a imagem dela que traz à tona esperanças, desejos, seduções, dessa forma, um especial universo dos sonhos  se sobressai, marcado pela prevalência das vozes e pela presença em destaque da noiva e de outras personagens femininas em cena.

Nessa cerimônia, símbolo de candura e pureza, a cor branca camufla a sensualidade e a sexualidade, que estarão escondidas nas fendas das falas do reverendo, nos gestos contidos da platéia, na entrega da filha ao noivo, feita pelo pai ou no modo como o marido levanta o véu para dar “o primeiro beijo” em sua mulher, logo após, “unidos para sempre”.

Adentrando igrejas, corações e mentes, o ritual do casamento perpetua-se figurativamente como imagem de possíveis realizações, enquanto a sutileza da fantasia dissimula os laços e os nós das relações familiares que existem e as que estão por vir, para que possamos visitar ou revisitar, a magia de nossas vidas, de nossas ilusões, de nossos sentimentos e desejos.

DENTRO DAS CAVERNAS de Platão e de Saramago

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Relendo A CAVERNA de Saramago, e relembrando A CAVERNA de Platão, constato que o mundo mudou muito e também nada mudou. Parodoxal? Vejamos:

A alegoria da caverna, apresentada por Platão [A República – livro VII] é uma poderosa metáfora que busca descrever a posição do homem em relação aos estados de inconsciência criados pela incapacidade de este distinguir o que é apenas aparência do que é realidade. Para o filósofo, todos nós estamos condenados a ver sombras à nossa frente e tomá- las como verdadeiras.

É através do diálogo entre Sócrates e Glauco que Platão descreve em A República (livro VII) uma caverna onde pessoas estão acorrentadas nos pés, com o pescoço também acorrentado e imobilizado, obrigando-as a olharem sempre para frente. Presas a um banco; sentadas em frente a um a parede, as pessoas têm, atrás delas, uma fogueira que projeta imagens de passantes que carregam estatuetas sobre suas cabeças, assim, os prisioneiros só conseguem enxergar o tremular das sombras daqueles objetos. Portanto, o mundo, para estas pessoas, é feito de imagens, somente, imagens.

Em A Caverna, José Saramago narra a história de Cipriano Algor e de sua família, no início da narrativa assim constituída: Cipriano, a filha Marta Isasca (sobrenome/apelido herdado da mãe já falecida) e Marçal Gacho, o genro. Depois, chegam à família o cão Achado (quase humano) e a Isaura Estudiosa.

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DUPLOS CLIQUES

Trabalho apresentado por Sônia Moura – Congresso “Sobre olhares” – UFF/ agosto/2006

OLHAR VISIONÁRIO

Para muitos, o olhar do visionário pode-se apresentar de forma obscura no que diz respeito à representação da realidade, pois este olhar circula por um universo misterioso e hermético, que o olhar de outros nem sempre consegue desvendar.

Os diferentes aspectos destas visões em chamas vão-se revelando ao visionário na medida em que este ser privilegiado não impõe coordenadas ou ordem àquilo que é olhado, fazendo com que o real estabelecido perca o equilíbrio e permita o encanto de revelações significativas, assim como o fazem as linguagens poéticas e proféticas, uma vez que entre o olhar e a palavra do visionário flui um íntimo e consagrado diálogo.

Um número ilimitado de experiências, nascidas das realizações de vivências criadas por estes poetas ou profetas – recriadores de sonhos, de fantasias, do tempo e do espaço – estas experiências surgem na forma de representações artísticas, por exemplo, a representação dos ritos e a consagração do mito plantados num mundo nem sempre reconhecido por nós, simples mortais, porque, verdadeiramente, este mundo reflete a imagem de muitas ausências.

Quando se tenta abarcar a realidade em toda a sua plenitude, pode-se ficar condenado a uma espécie de solidão. Aquele, a quem são permitidas as iluminações, alcança uma transcendência que o desviará de um destino terrestre e concreto, o que pode ser entendido como uma difícil solidão.

A primeira marca desta transcendência está acoplada à questão da temporalidade, que por sobrelevar muitos caminhos, transforma também a questão espacial e pela fusão modificadora destes elementos, a difícil solidão converte-se na mais pura liberdade.

As revelações mostradas ao visionário, e por ele a outros desvendadas, colocam-no em nosso mundo com a roupagem de divindade, uma vez que, suas visões provocam um olhar afastado das visões convencionais, então, a progressiva perda da realidade captada por este deus “adorado e excluído” enseja-nos pensar no não pensado.

A duplicidade pepassa toda a configuração do olhar visionário: o dito e o não dito, o visível e o invisível, o começo e o fim, o real e o imaginário, o possível e o impossível, o simples e o complexo, o deus e o diabo, o som e o silêncio, o coerente e o incoerente, o consciente e o inconsciente, o consistente e o inconsistente, o sagrado e o profano.

A partir daí, a presença do duplo, revelada pela palavra e pelo olhar dos visionários, projeta-se, por vezes, pela “metamorfose” em um outro que falará pela boca do visionário, alargando os caminhos dos mistérios, porque um deles, naquele momento estará fragmentado pela influência oculta da presença de um outro.

Deusas secretas, as palavras dos iluminados se apresentam na dicotômica fronteira do mostrar-se a todos e revelar-se a poucos, lançam-se no espaço e dão voz ao olhar. Por serem dotadas de uma magia infinda., esculpem, com tinta ou grafite, o que os olhos vêem, ou melhor, como os sentidos destes escolhidos percebem. Mostrando a tranqüilidade de um beija-flor e a agilidade de um felino. Estas palavras, inteiramente nuas, negam sentidos habituais, destronam significados, criam e recriam metáforas, substituem a noção de verdade pela noção de verossímil, trabalham o significante do signo, enfim, promovem a revolução.

Os “iluminados” incitam o imaginário por suas posturas ambivalentes, sob o efeito do momento sagrado, são eles verdadeiros artistas criam e recriam idéias, palavras, imagens; os profetas conduzem seus rebanhos pela proposta de reformulação da ordem ou da desordem; os xamãs, os pajés, os pais-de-santo e guias espirituais, invocam os poderes sobrenaturais para servirem de intermediários entre estes e os seus.

Germe do mundo, cíclica e adorada, a semente (matriz)ao metamorfosear-se em vegetal recebe todas as homenagens pela ocasião da colheita. No paraíso foi através do fruto, produto do vegetal, que o pecado e o pecador se encontraram e conheceram a ira do Senhor. Alguns ritos profanos, num desdobramento fantástico de novas “leituras”, transformam-se em ritos religiosos por ser impossível apagar a imaginação, assim também a expressão autêntica da visão vive das transferências que se estabelecem entre este e o outro plano.

Tendo como mediadora as diversas demonstrações culturais, o sagrado e o profano unem (mesmo quando fingem se afastar) para ratificar os poderes concedidos aos visionários. Os mistérios da fé, os cânticos (religiosos ou profanos), os ritos, os mitos, os símbolos e a sua perpetuação, mesmo quando sujeitos a toda gama de modificações, colocam o homem em contato com o cosmogânico, com o ovo –gênese do mundo, com a realidade primordial, com a multiplicidade dos seres, com a imagem do mundo e com a sua própria imagem ainda não desvendada.

O duplo barroco emoldura a definição atribuída ao visionário, enquanto a estética simbolista desenha-lhe o olhar e a arte surrealista confere-lhe a primazia de todas as manifestações do subconsciente, das imagens e a faculdade de se expressarem livremente, deixando correr livre o pensamento na sua forma espontânea e irracional.

Guardião da palavra e do olhar , assim como o tempo e o seu divino regresso, mensageiros da memória do mundo, em suas iluminações, o visionário tenta tirar o homem do seu isolamento e do silêncio de um bosque submerso, para que este possa ter o encontro inesperado e presenciar o diálogo entre a sanidade e a loucura.

Apoiados no olhar do visionário, somos levados à presença dos deuses para que possamos participar da representação do imaginário e de sua realidade fundamental: o encontro com os nossos segredos; como os que estão contidos nos arquétipos ancestrais.

Dá até Show!

Dá até show! por SÔNIA MOURA

“ O mundo presente e ausente que o espetáculo
faz ver é o mundo da mercadoria dominando
tudo o que é vivido”
(Guy Debord)

Em tempos de globalização econômica e cultural, somos colocados frente a telas que nos dão visões culturais multiplicadas e, ao mesmo tempo, unificadas, histórica, econômica e ideologicamente. Igual, tudo igual. Será mesmo verdade? Ou haverá marcas de um passado em que o que marcava de fato eram as diferenças? Continue lendo

VERSÕES E SUBVERSÕES ARTÍSTICAS

Sendo a arte o repositório de informações culturais de uma época e o artista, aquele que trabalha a realidade, o sonho e a utopia, abordar a concepção artística, compreendida na definição do fenômeno trágico é, de certo modo, reafirmar que “a perda da Tragédia leva o homem à perda da fé e da crença na própria imortalidade”.
O artista em sua aventura visual, em suas viagens e descobertas pode (ou deve?), com sua obra de arte, arrastar o espectador e colocá-lo surpreendido com o seu destino, já que o homem de todos os tempos sente a necessidade do prazer estético, do olhar, da harmonia, do equilíbrio, do ritmo e da composição.
A obra de arte tem forma e obedece às leis da forma, pois ao elaborar a representação artística de pessoa ou de objeto, o artista sabe que sua obra estará sujeita ao material usado: madeira, ferro, tela ou pedra, ao contexto e as influências sócio-históricas, aos seus desejos e sonhos, os quais permeiam o fazer artístico, no entanto, o que garantirá a emoção e a sensação da obra de arte, será o ritmo visual e as relações estabelecidas no/e pelo olhar do espectador.
Para interpretar o antagonismo estético entre as forças Apolínicas e Dionisíacas, Nietzsche passa da metaforização estética à oposição psicológica (sonho, embriaguez), assim, a arte do homem torna-se um acontecimento cósmico, quando a tragédia dramatiza uma realidade muito forte e pela dramatização acontece a catarse, confirmando-se, então, a relação entre a arte e a vida.
A carência gera a necessidade, a Tragédia, a mudança e é pela sensação de recriação produzida por meio da Tragédia (produção artística) que o homem saboreia, participa do que é natural e ao mesmo tempo fictício, e é neste instante que acontece a condensação , a identificação com uma situação incômoda e que precisa ser expurgada. Neste embate entre a realidade e ficção, a Tragédia permite que da identificação, nasça o conflito e dele se origine o alívio, dando-se , assim, a catarse.
Deste modo, o processo criativo na sua invenção, um dos pontos primordiais em destaque no texto O Nascimento da Tragédia de Friedrich Nietzsche, mostra que a obra de arte, seu conjunto de imagens e as inesperadas associações podem criar múltiplos centros significativos, expandindo a função artística, para que o viés privilegiado do olhar se delicie com as versões e subversões artísticas.