INCOERCÍVEL FANTASIA

INCOERCÍVEL FANTASIA  (Autoria: SÔNIA MOURA)   incoercível fantasia

O filme O IMPÉRIO DOS SENTIDOS, que revi esta semana,  nos traz a leitura polissêmica das sensações, suscita o reexame da força dos sentidos, do que é erótico (e não pornográfico), do que é desejo (e não vulgaridade) e ativa a circulação da percepção através de todos os sentidos.
O título (em português) guarda intrinsecamente o significado maior da face múltipla do diálogo entre o EU e o OUTRO, sugerindo novas possibilidades de compreensão do desejo, regido pelos sentidos, provocando as sensações, por intermédio das quais os elementos constitutivos do mundo mostrado projetam-se nas figuras de EROS e TANATOS, insuflando o espectador cuidadoso a voltar-se para as imagens com o olhar revelador do jogo da representação erótica.
EROS e TANATOS são elementos transitivos nesta narrativa cinematográfica que, na existência dos contrários, tecem o mistério do desejo pleno, no qual convivem no mesmo espaço : vida e morte, realidade e prazer.
Neste jogo da representação erótica, o sujeito, na busca das mais profundas sensações, se coloca primeiramente diante do seu outro para (re)nascer, instalando-se no outro pela conjunção de elementos provocadores do intercâmbio: amor e desejo.
O rompimento com a solidão tem início com a aparição do que chega (a mulher) ao ambiente em que irá circular livremente um espocar de emoções. Um dos cenários escolhidos é, de certa forma, o retrato da ambigüidade, apresenta-se desenhado por pinceladas de promiscuidade e é nele que surgirá o amor sensual, livre, contrapondo-se à imagem do amor meramente romântico.
Pelo encantamento erótico e pelo jogo da sedução, o poder conferido à mulher, no que diz respeito ao “uso”de sua sexualidade, permite a esta exercitá-la plenamente, liberando-a e a seus desejos, deixando de lado o jogo da repressão, nascido da moral (da própria mulher ou a dos outros).
Transitando pelas fendas de designações consideradas inaceitáveis pelas normas instituídas pelo sistema: prostituição, traição, liberação do desejo, ao mesmo tempo que transgridem e transformam as regras sociais, os protagonistas, representantes de uma sociedade castradora e limitadora, traçam os contornos do espaço aberto ao desejo e sua busca do prazer, das representações e das reapresentações eróticas, as quais as imposições nos fazem negar.
O poder da sedução surge pela transformação mágica do prazer, colocando em embates constantes a loucura e a razão, o medo e a coragem, deixando deabrochar como os salgueiros em flor o desejo sem culpa, sem barreiras ou fronteiras com a clareza da liberdade animal. Deste modo, a fábula amorosa envolve os amantes e mostra uma natureza erótica não parasitária.
O elo entre as imagens moventes e o espectador é emoldurado por estímulos que pulsam na tela e conseguem envolver não apenas pelo espetáculo sexual, mas também pela solicitação de nossa cumplicidade, apelo este que nos vem através das imagens poéticas dominantes. Estas imagens poéticas criam um universo independente de conceitos estabelecidos, negando o mundo das aparências, concebido como real e absoluto, aquele que relega o erótico e a sensualidade a um canto escuro e isolado, reflexo de sociedades hipócritas.
Segundo Francesco Alberoni (1), “O erotismo se apresenta sob o signo da diferença. Uma diferença dramática, violenta, exagerada e misteriosa”, é exatamente por estes caminhos que os sentidos irão transitar, deixando o intransitivo social de lado, escapando das prosaicas restrições ao desejo, desta forma, os sentidos captam a essência dos seres e do mundo e a devolvem em forma de prazer ilimitado e transcendental.

Construindo um mundo às avessas do que é “permitido”, os sentidos explodirão na tela em cores, sabores, peles e sons instigando os protagonistas e a assistência a se embrenharem por labirintos saborosos, excitantes e estimulantes.
O primeiro sentido a se manifestar será o da visão – o olhar: o desejo que fala. Simbolicamente, o olhar é prerrogativa dos deuses, emprestada aos seres humanos, é SEDUÇÃO que hipnotiza, prende e fascina. Dotado de poderes mágicos, este instrumento das ordens interiores, é o espelho de duas almas, que irá abrir as janelas do encantamento por onde começará o diálogo óptico, provocador do desejo espelhado na tela como um caleidoscópio, denunciando o sentido de algo interior que se romperá para o exterior. Mágico, mítico e indeterminado, o olhar anula a antecedência, arrebenta correntes, comove, une e desarticula conceitos e preconceitos.
É o olhar que provoca também o primeiro momento de tensão(e de tesão) confirmado pelo indefinido deslumbramento; quando a súbita presença se revela: O OUTRO.
O olhar (masculino e feminino), não escamoteado, exibido pela força provocadora de sensações e desejos, revela-se e é revelado, entrelaçando sujeito e objeto, na transposição erótica de um e de outro, unindo fantasias e realidades.
A cumplicidade, de quem olha e de quem é olhado, libera o olhar do espectador, confirma e denuncia a imagem fundamental do desejo. O desejo (feminino e masculino) desenhado no mesmo plano, permite o instante eterno e, no centro de tudo, explodirão a intuição e as outras sensações, as quais fomentarão a viagem persistente que as personagens irão empreender.
Através de estímulos verbais, os amantes everendam por muitas cavernas, conscientes ou inconscientes, na busca da completude, da renovação e da liberação do erótico, até chegarem à plenutide do ser: o PRAZER.
A palavra, para os gregos, era razão, inteligência, idéia e o sentido mais profundo do ser – era o próprio pensamento; também está ligado simbolicamente à alma, e era a primeira manifestação divina nas concepções cosmogânicas.
Símbolo de fecundação, germe da criação, a palavra é fertilizadora e é por meio dela que o protagonista “engravida”seu objeto de desejos, desejos estes que irão despertar, depois do derramamento daquelas palavras quentes e úmidas, que escorrem pelos ouvidos da protagonista, invadem os ouvidos da platéia, indo ocupar o lugar da desarticulação, para que EROS e TANATOS possam se encontrar.
Dotadas de poderes mágicos, as palavras vão-se instalando, conquistando e se deixando conquistar. Medindo-se num corpo-a-corpo incansável, travam um duelo permanente com EROS e TANATOS, ambos seduzidos pela palavra, pois ante uma palavra bendita até o encantamento se encanta. Por ser a metalinguagem da sedução e a condutora do fascínio mútuo, a palavra transita livremente no ar, transmutando-se em produtora do sentido não fragmentado do discurso da fascinação, dissolvendo qualquer resistência em constelação do desejo.
A música, parceira da libido, denuncia acintosamente a presença de EROS, entra na dança, fazendo par com a caça E os caçadores do desejo insaciável, dos gozos sensoriais, da sedução e da posse., para que unidos, os amantes possam penetrar nos mistérios e na simplicidade do gozo, despertando segredos que dormem escondidos.
Acordes repetidos sistematicamente suscitam significações ligadas ao sensual; tons e sons provocadores da libido licenciam a imaginação e açulam o tesão, vindo a provocar o imaginário individual e o coletivo, transformados na convergência dos sentidos.
As palavras, desaguando em rios mansos ou agitados, inundam a alma, mas, em alguns momentos, sucumbem na presença do olhar e este passa a compartilhar com o tato as delícias de percorrer os caminhos tentadores do corpo, ambos, olhar e tato deslizam lenta e levemente pela pele, até que a palavra, finalmente, emudeça. Num dado instante, o olhar se tranca em seu quarto e deixa à memória o prazer, através das lembranças do que ainda está tão presente e tão próximo, cabendo ao tato o ápice da glória – a sensação pelo toque, acalentando outras sensações.
A fantasia abandona-se ao prazer da digressão sexual, quando entram em cena o toque, o tato, o contato e a pele. A partir deste momento, amor e aventura emolduram um mundo onde tudo cabe, ajudando o homem a desvendar uma nova mulher e a mulher a desvendar-se a si mesma e nesta mistura de pontos: tato, contato, pele e toque, o fantasma atraente de EROS é o herói sem disfarce que ajuda os amantes a vencerem qualquer obstáculo e eles se tornam os herdeiros do sonho.
Através do cheiro, sutileza volátil, o sexo dilui-se pelo quarto e, os perfumes que no ambiente exalam e com os quais os amados se (con)fundem, dão um clima de afetividade e pureza e, ao mesmo tempo, um forte ar de fascínio, sexualidade, tentação unem na mesma carga simbólica: renúncia e posse.
É pelo cheiro que os animais se reconhecem, se estimulam e se excitam; nós, animais afastados da nossa verdade, nos deixamos levar pelas asas do vento de imposições e pelo uso de tantos outros perfumes colocados sobre o corpo, apagamos os rastros e deixamos perdidos o sentido do olfato. Em O Império dos Sentidos, o olfato e a gustação participam das proezas de EROS, maravilhosamente (im)prudente, no seio do espetáculo do delírio.
A representação erótica é quase sempre anulada, disfarçada ou manipulada em todas as formas de expressão artística, no entanto, neste filme, a máscara é destronada pela configuração significativa dos sentidos, assim, tudo é permitido, tudo é mostrado, tudo é sentido.
Olfato e gustação se sobrepõem, então o prazer e o desejo são colocados à mercê dos sabores e dos cheiros. Tudo é provado e aprovado: a pele, o sangue, a comida, a bebida, o falo e a vulva, tudo se materializa em aparição das delícias sexuais.
O sangue, símbolo do ventre, onde morte e vida se transmutam uma na outra e o vermelho , a mais contraditória das cores , simbolizando ambivalências: ação x paixão, liberdade x opressão, provocam a fascinação, o dinamismo e a excitação.
Seja como denunciadores do ciúme, seja como imagem do sabor tomando o lugar da aversão, do nojo do “que é impuro” ou da dor da perda, esta dupla de sustentação denuncia, já no início do filme e reafirma a presença de TANATOS no território de EROS, para ao final se apresentarem como identificadores da MORTE e da VIDA, no momento em que o círculo se fecha e TANATOS substitui EROS para assegurar a vitória do prazer.

(1) ALBERONI, Francesco. “As diferenças”, in O EROTISMO – fantasias e realidades do amor e da sedução. São Paulo, Círculo do Livro. 1986.
(*) Referências simbólicas colhidas do Dicionário dos símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant.

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