SACRALIZAÇÃO E DESSACRALIZAÇÃO (por SÔNIA MOURA)
P arte 1 – DA PALAVRA –
*A PALAVRA FALADA
Nos dias de ontem, no período de 1500 a 1800, dá -se ao discurso um caráter sagrado, seja este sagrado: religioso, político, científico, comercial, em que as mudanças sócio – culturais vão-se estabelecendo e algumas falas devem ser consagradas, veneradas. É a fala intocável que chega para destronar, ou confirmar o que é regente. Esta fala melodiosa e envolvente; autoritária e ordenadora sacraliza novos rituais, novas manifestações, por exemplo, o culto à virgem e concomitantemente dessacraliza antigos cultos, por exemplo, o culto a Vênus.
Nos dias de hoje, a palavra falada serve a muitos senhores e a seus interesses, uma vez que pode representar uma imposição velada, visando a transformações sociais ou culturais e, assim sendo, como a palavra falada apenas precisa ser ouvida para multiplicar conceitos, para enriquecê-la mais, tornando mais marcante o efeito do que se quer propagar, acrescenta – se a ela a imagem, que nem sempre corresponde ao que dizem as palavras, mas, ainda assim, consegue a muitos enganar, iludir e deles zombar.
* A PALAVRA ESCRITA
O texto impresso como forma de registro histórico – cultural aparece quase que ao mesmo tempo em que o valor- qualidade da cultura popular começa a ser substituído pelo valor de consumo , do que se consome.
A partir da palavra escrita haverá a perpetuação de conceitos, ideologias e do que se converterá em senso comum e por intermédio do que está grafado (o discurso dos poderosos ficará gravado).
E, assim como a tensão flutuante do rio – o conceitual – religioso, cientificista, econômico ou não – se propõe, naquele momento histórico (1500- 1800) e em outros também, a explicar e a organizar o mundo e nossas vidas, porém um fato, um som, um gesto, uma lembrança faz romper a tênue película, e, neste instante, descobre-se que o mundo não foi e não está explicado, e que o mundo não foi e não está organizado.
É desta forma que os modos culturais se perpetuam, modificados ou não. Retomados, reformados ou esquecidos num canto da memória do inconsciente coletivo, a manifestação cultural voltará a ser revisitado como objeto de estudo ou disfarçado pela curiosidade frente ao exótico. De qualquer jeito que as formas culturais se apresentarem, será sempre para mostrar a resistência da cultura de um povo.
O texto impresso ( livro), a alfabetização (ou a negação desta) e o uso que se fará ou que se poderá fazer deles, criará a grande dualidade nascida por medos e dúvidas dos detentores das diversas imagens do poder, opiniões e atitudes diversificadas florescerão. Há alguns que os consideram aliados e outros os consideram traiçoeiros, a alfabetização deve ser incentivada, proibida ou limitada, mas com certeza estará, na maior parte do tempo, a serviço do poder.
A sacralização do texto impresso se dá por seu poder de repetição sistemática, por seu poder de registro e por seu poder de multiplicação e divulgação de idéias, ideais e ideologias; é o sagrado aprisionado e circulante.
Um bom exemplo da dessacralização está numa palavra-chave para o nosso estudo: POVO – que antes significava “todo mundo” ; depois passou a ter uma única designação: POVO = “gente simples”. Esta cisão semântica é a representação da cisão política, econômica, artística e, principalmente, cultural, uma vez que o termo que representava o todo, agora, restringe, exclui, acontece então a sacralização da separação sócio – cultural, acontece a secção dos indivíduos.