DENTRO DAS CAVERNAS de Platão e de Saramago

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Relendo A CAVERNA de Saramago, e relembrando A CAVERNA de Platão, constato que o mundo mudou muito e também nada mudou. Parodoxal? Vejamos:

A alegoria da caverna, apresentada por Platão [A República – livro VII] é uma poderosa metáfora que busca descrever a posição do homem em relação aos estados de inconsciência criados pela incapacidade de este distinguir o que é apenas aparência do que é realidade. Para o filósofo, todos nós estamos condenados a ver sombras à nossa frente e tomá- las como verdadeiras.

É através do diálogo entre Sócrates e Glauco que Platão descreve em A República (livro VII) uma caverna onde pessoas estão acorrentadas nos pés, com o pescoço também acorrentado e imobilizado, obrigando-as a olharem sempre para frente. Presas a um banco; sentadas em frente a um a parede, as pessoas têm, atrás delas, uma fogueira que projeta imagens de passantes que carregam estatuetas sobre suas cabeças, assim, os prisioneiros só conseguem enxergar o tremular das sombras daqueles objetos. Portanto, o mundo, para estas pessoas, é feito de imagens, somente, imagens.

Em A Caverna, José Saramago narra a história de Cipriano Algor e de sua família, no início da narrativa assim constituída: Cipriano, a filha Marta Isasca (sobrenome/apelido herdado da mãe já falecida) e Marçal Gacho, o genro. Depois, chegam à família o cão Achado (quase humano) e a Isaura Estudiosa.

Há três gerações a família Algor lida com o barro, amassa, modela… Feitos de barro no velho forno, os produtos, que antes tinham mais valor de uso que de troca, agora já não têm mais valor de troca para o Centro, embora não tenham perdido o seu valor de uso: “…eu levo-lhe um cântaro novo para substituir esse que se partiu, não tem de pagar, é oferta da fábrica.” (SARAMAGO: 2001, 46).

Para o mundo das luzes que nunca se apagam [oCentro], as “coisas”- produtos da olaria – já não têm mais nenhum valor e serão defenestrados sem piedade, por uma janela chamada prática mercadológica, uma janela que nunca se abre a sentimentos.

Da mesma forma, qualquer forma de sentimento é anulada: “Eu não sou bom, sou prático…” (SARAMAGO: 2001, . 131);e  também, anula-se a pessoa, dissolve- se o “eu”: “Se tal acontecer, senhor Cipriano Algor, para mim, tornar-se-á invisível…” (130).

Quando o Centro deixa de comprar a mercadoria (peças de barro), decreta a morte do estabelecimento (olaria), uma vez que o Centro domina o mercado, todos vendem para ele e/ou compram dele: .“…mercadorias que interessavam e deixaram de interessar é uma rotina quase diária no centro… para eles a coisa é simples, ou o produto interessa , ou o produto não interessa, o resto é indiferente, para eles não há meio termo “( SARAMAGO: 2001, 65).

Como pessoas e coisas são postas no mesmo nível e as coisas já deixaram de interessar ao Centro, por extensão a família do oleiro também não é mais necessária. Sem os recursos da venda de seus produtos, a família Algor continua a depender do Centro, onde, Marçal, o genro, é guarda interno que espera ser promovido a guarda residente e realizar o sonho de muitos: ir morar no Centro.

Nestas circunstâncias, quando Marçal é promovido a guarda residente, todos dependerão de seu salário, pago pelo Centro, e esta situação obriga a família a se mudar para o Centro e até mesmo Algor “aceita” acompanhar a filha, embora esta atitude  violente o seu “eu”.

A globalização e o  Centro – uma de suas crias – são como o sol em torno do qual tudo e todos devem gravitar, depender da sua luz e do seu calor, então, ao invés de todo mundo se iluminar com os saberes e fazeres alheios, com outros modos de ter e de ser, tudo se torna pastosamente igual.

É neste cenário artificial, no sensacional e no simulacro que a sociedade se contempla e se completa. Então, o olhar do sujeito desamparado se volta para o Centro à procura de qualquer marca que lhe ofereça algum sinal de pertencimento, de identificação, confirmando o que nos mostra Suart Hall (1999) ao falar sobre identidade, tempo e espaço no mundo globalizado:

O que é importante para nosso argumento quanto ao impacto da globalização sobre a identidade é que o espaço e o tempo são também coordenadas básicas de todos os sistemas de representação….Todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos” (p. 70/71).

No Centro, o espaço é milimetricamente planejado e o referencial de tempo (meteorológico ou cronológico) se perde, assim como as identidades fragmentam-se, uma vez que os olhares se voltam para as mesmas mensagens e para as mesmas imagens ou quando todos se tornam, forçosamente, dependentes das mesmas representações simbólicas, desfazendo-se qualquer forma de ausência, pois o mundo todo é reprisado dentro do Centro, como podemos observar nas seguintes passagens de A CAVERNA.- SARAMAGO, 2001:

“ A organização do Centro fora concebida e montada segundo um modelo de estrita compartimentação das diversas actividades e funções…(p.39).

“ Marta disse, Estas pessoas não vêem a luz do dia quando estão em casa. As que moram nos apartamentos voltados para o interior do Centro também não…praticamente enclausuradas…sem luz do sol, a respirar ar enlatado todo o dia… (p.278/279)

“…enfim, uma lista a tal ponto extensa de prodígios que nem oitenta anos de vida ociosa bastariam para os desfrutar com proveito, mesmo tendo nascido a pessoa no Centro e não tendo saído dele nunca para o mundo exterior.” (p.308)

Ao contrário de muitos que, levados por propagandas apelativas sobre o lugar, pelo desejo de não ser um excluído, pelo medo da velhice ou porque viam o Centro como sinônimo de segurança (por exemplo, os pais de Marçal), Cipriano rapidamente percebe que a vida no Centro era muito ensossa. Mais tarde, ao descobrir os “prisioneiros do subterrâneo”, o oleiro confirma suas suspeitas de que lá todos vivem em uma prisão.

E, como o homem foi feito para pensar, para reconhecer e para se conhecer, Cipriano Algor não se deixa aprisionar, arranca o grilhões, liberta-se e, a seguir, libertam-se também sua filha Marta Isasca e seu genro Marçal Gacho; posteriormente juntam –se a eles: Isaura Estudiosa (depois) Madruga e o cão Achado, e todos partem à procura de um novo lar: “Vamos, disse Marçal, Vamos disse Marta. Subiram para a furgoneta, os dois homens à frente, as duas mulheres atrás, com o Achado ao meio…” (SARAMAGO: 2001, 349).

Os Algor se vêm obrigados a deixar para trás o passado, a tradição, a continuação e, quem sabe, a profissão de oleiros, que representa o elo de confirmação da unidade familiar:“…falaste de preocupações, as minhas preocupações são iguaizinhas às tuas, a olaria, as louças, os bonecos, o futuro, quem partillha uma coisa também partilha a outra.” (Saramago:20o1, 140).

Eles partem, mas o centro continuará a crescer, crescer… mesmo que seja para baixo, para a “descoberta” de mais um filão lucrativo: a Caverna de Platão!

Platão e Saramago buscam evidenciar como as pessoas podem viver na irrealidade, deste modo, a leitura de suas obras leva à descoberta de que o homem vivencia o mundo pelas sombras, pelo mundo das imagens virtuais, e esta vivência leva-o ao não conhecimento de si mesmo e de seu mundo, podemos dizer que estas narrativas são poderosas metáforas do homem e de seu lugar no mundo.

Saramago atualiza o mito da caverna, apresentando imagens espaciais distintas, colocando-nos entre dois mundos: o da liberdade, da criação, da criatividade, da arte – a olaria e o mundo do Centro: da limitação, da produção em massa, da ilusão.

Enquanto o primeiro deverá ser extinto, por ocupar um espaço, que, segundo as regras da globalização, já não lhe pertence mais, o outro é a representação imagística da própria globalização, na qual “quem não se ajusta, não serve”(p.347), como a família protagonista desta história.

Em A Caverna de Saramago, o centro – caverna continuará a engolir as pessoas e coisas. Tal qual mariposas, atraídas pelas luzes e pelos produtos em exposição, pessoas tornam-se bonecos aprisionados e não se percebem envolvidas pelas sombras; nesta caverna todos são, de alguma forma, consumidos ou consumidores, todos são prisioneiros: os consumidores – marionetes, os fornecedores ávidos e necessitados de escoar sua produção, as pessoas atraídas pela promessa de melhores condições de vida.

Tudo gira em torno do Centro Comercial, deus contemporâneo que tudo pode: no Centro a vida pode ser salva ou prolongada (simbolizado pelo hospital do Centro e pela possibilidade de Cipriano Algor voltar a vender seus produtos), e que também pode amparar na hora da morte física (cemitério) ou provocar a morte psicológica, criativa, por intermédio do seu departamento comercial (simbolizado. pela impossibilidade de Cipriano voltar a vender seus produtos).

O importante é estarmos alerta para não cairmos no logro da falsa felicidade e nos tornarmos presas fáceis , diante da caverna-vitrine de hoje, senão, seremos feitos prisioneiros e estaremos novamente acorrentados, vivendo no mundo das sombras, aquele mesmo descrito por Platão, agora atualizado pelas luzes em néon.

Trabalho apresentado por Sônia Moura – congresso –  UFF – 2006

Um comentário sobre “DENTRO DAS CAVERNAS de Platão e de Saramago

  1. waldete cunha disse:

    ola, estava buscando na internet algo que enriquecesse meu trabalho de monografia que estou fazendo sobre o livro a caverna de jose saramago, e com seu comentaria so ira enriquecer pois justamente estou fazendo um paralelo entre as obras de saramago e a de platão.

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