GAVETAS SECRETAS

 GAVETAS SECRETAS

GAVETAS SECRETAS  (Autoria: Sônia Moura)

 

De gavetas secretas, retiro cartas antigas, escritos perdidos, escritos escondidos de mim e do mundo, tudo tão amarelado como o tempo que também se escondeu de mim, então, aquelas palavras, sem nenhuma lapidação, sem nenhuma preocupação senhoril, saltam para o colo dos meus olhos e se atiram em minhas retinas, e, como crianças, brincam  de pique esconde, brincam de roda e de cabra cega. 

Parece-me ouvir-lhes as gargalhadas infantis, soltas, livres, correndo para mim, e mesmo que eu quisesse repudiá-las, não conseguiria, elas se aninhavam em meus poros e defloravam meus ouvidos, desvirginando o passado.

Como pássaros na primavera, cantam suas histórias e bolem com minhas memórias. 

Seriam as gavetas suas gaiolas? Ou seriam o papel e a tinta? Ou seria somente a escrita?

Quando se mostram sentimentais me provocam o choro, no entanto, se estão alegres, me provocam o riso, despertam  sensações adormecidas, mas, se querem a festa ou o luto, se enterram em meu coração, ora como flechas de Cupido, ora como flechas embebidas em curare, de uma forma ou de outra me entorpecem a alma, mas não morro, peço socorro a outras palavras e elas veem em meu auxílio, me resgatam e me acalentam, ao (re)encenarem encantos e silêncios, trazendo para a vida momentos de graça e deslumbramentos.

Equilibrando-se no fio da navalha, o fio do meu olhar lê o quase indizível, o quase invisível e segue desenhando elipses vocabulares e geométricas no emaranhado de palavras que versam sobre o que poderia ser entendido como impossível, e que somente a força da poesia é capaz de tornar imediatamente possível.

Procuro ficar vigilante, nego que qualquer escrito seja fingimento, ponho-me em alerta contra a insistência da dor, que insiste em atrapalhar a nossa festa, mas permito que a solidão e a ilusão cheguem de mansinho, para colocar ordem na casa, chamando a dor para o meio da roda, levando-a a rodopiar, até ela se cansar.

A presença de todas as tramas, de todos os dramas, de todos os eus, de todos os nós, de todos os estamos sós circunscrevia-se em nós difíceis de se desatar, era o verbo que se fazia homem ou era o homem que se fazia verbo, metaforizado em ritmos e rimas a devorar a existência de tempos, de alegrias ou de lamentos, num divino regresso. Era o etéreo encantamento da poesia que bailava no ar.

Aquele turbilhão de palavras poderia transformar-se em tormento, mas o crepúsculo dos deuses dava nova forma àquele momento, onde pedras, flores, águas, cânticos tinham a mesma leveza do amor, tornando tudo sagrado, pondo todos sob as bênçãos da transcendental criação dos substantivos, dos adjetivos, dos verbos, dos advérbios e de todos os artífices que emolduravam aqueles tesouros escondidos no fundo da gaveta secreta.

A vida e a morte confrontavam-se num duelo à luz do sol e este duelo poderia não terminar, mas, bastou a luz da lua se aproximar e as duas se acalmaram, para que o mais forte do ser – poeta pudesse se mostrar às estrelas, permitindo que as palavras saissem da fenda da memória, do rastro da história, da rede do tempo, fazendo vários movimentos para provocar o poeta, para animar a festa que acontecia, no palco celestial da escrita. 

Como frutos maduros que, ao serem mordidos, deixam escorrer o mais doce do seu mel, isolando o fel, as palavras permitem a quem as lê o direito de penetrar em suas cavernas, em suas florestas; escalar montanhas ou descer aos vales e ainda permite ao leitor que lhes arranque os mil véus e, neste instante, elas se deixam revelar, para que o leitor possa penetrar em paraísos perdidos e neles se (re)encontrar. 

 

(Autoria: Sônia Moura)

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