A BELA E A FERA – LITERATURA E CINEMA

Bela e a fera

A BELA E A FERA NO CINEMA [Por Sônia Moura]

Originalmente, na Inglaterra, o cinema se chamava bioscope, porque representava, em termos visuais, os movimentos das formas de vida. Simbolicamente, o cinema alargou esta definição para “os movimentos das formas de viver”, ao atualizar “realidades”, provocar fantasias, despertar mentes, repetir ritos, assim o cinema nos traz o espetáculo “salvador”.

A rede narrativa cinematográfica dá solidez aos fatos narrados por seus mecanismos de sugestão, que se apóiam nos símbolos, nas associações de imagens e, assim, reprisa – se o mundo, (re) constrói – se um universo verossímil, como se verdadeiro fosse, passa a ter estatuto de poder e qualquer forma de poder espraia ideologias, fá-las representações do senso comum, dá voz, deforma, reforma e forma “consciências”, podendo provocar metamorfoses, uma vez que o processo ideológico recorta o real de acordo com o seu modelo.

O filme de Walt Disney (A Bela e a Fera) é uma metamorfose mítica do conto A Bela e a Fera; o título da obra (também codinomes dos protagonistas) são metamorfoses de seus nomes ocultos, de seus perfis psicológicos; perfis comportamentais: bom/mau; bem/mal; feio/belo. Nesta obra cinematográfica, as metamorfoses fantásticas contracenam com as metamorfoses ideológicas, e o espetáculo, como ideologia, nos diz que tudo está ideologicamente em ordem: o social, o familiar, o ideativo, o cultural. Tudo está em ordem.

Desde o século XIX, várias teorias definem (ou tentam definir) o que é família. No lastro da história, vários são os papéis primordiais a ela atribuídos, de acordo com as necessidades ou prioridades de cada momento. Mesmo hoje, que o modelo de família é o modelo nuclear, um papel que não perde o seu lugar no âmbito familiar é o de auto – socializador, não só educa, mas também, transmite todos os condicionamentos para a expressão ou inibição de emoção.

Em Esparta, na Grécia antiga, os meninos eram retirados da presença materna aos sete anos para serem submetidos, desde então, a treinamentos militares rigorosos. A presença materna era considerada nociva, já que ia “mimar” e consolar os filhos nos momentos difíceis, tornando-os assim muito sensíveis e despreparados demais para assumir a dura missão de morrer pela pátria.

Algum paradigma com os contos de Fadas?
Numa versão bem próxima do que se conhece como o original de A Bela e Fera, a família de Bela é constituída por ela, o pai, dois irmãos e duas irmãs, enquanto no filme Bela é filha única e vive com o pai; o príncipe – a Fera -, vive sozinho.

As desmontagens familiares: substituição/divisão -mãe/madrasta; pai ausente; incesto; viagens, desencontros e reencontros, estas “desestruturas” são apontadas por Bettelheim como sendo uma espécie de truque da narrativa maravilhosa, para que a criança possa obter “.. o melhor dos dois mundos, que é o que necessita para se transformar num adulto seguro. Em fantasia, a menina pode vencer a ( mãe) madrasta … o menino pode matar o monstro..”.(Bettelheim p. 145) e, assim, as crianças podem manter os pais bem vivos e continuarem juntos com os pais “reais”.

Na obra: Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, os seres humanos eram criados em laboratórios, não existia família; também, em algumas publicações de A Bela e a Fera e no filme de Walt Disney, acontece a dissolução da família de Bela. Seria apenas o retrato desta nova família contemporânea nuclear ou seria esta mais uma estratégia ideológica da figura feminina em destaque? E o príncipe, por que está sozinho?

A Bela e a Fera, adptado pelo o cinema pelo estúdios Disney, é uma alegoria da passagem iniciática, na qual, após aceitar e realizar as provas, o herói representa a alma perdida no mundo a lutar contra os poderes inferiores de sua própria natureza e contra os enigmas que a vida lhe propõe, até encontrar os meios para a sua própria redenção e realização dos desejos.

Uma vez que pela transcendência mítica, a polissemia do fantástico reúne, materializa e traduz todo um mundo de desejos, o conto A Bela e a Fera é classificado em estudos literários ou psicanalíticos, dentro do ciclo arcaico ou ciclo da iniciação e, também, do ciclo da morte -ressurreição ou dentro do ciclo do noivo-animal.

Nesta forma de narrativa, no mesmo espaço mágico, no mesmo plano temporal (contemporaneidade) e cinematográfico aparecem a Bela e a Fera, ampliando a percepção espectador na direção ideológica de unidade, de direitos iguais, do “somos todos iguais”, criando uma forma de metamorfose transcendente que corresponde às substâncias unificadas da criação. Porém, no final, envolvida pelo véu do amor , acontece a viagem de volta à ideologia primordial, e Bela se rende ao amor romântico e irá se casar com o príncipe, não com a Fera.

Portanto, não devemos nos esquecer de que dos Contos de Fadas, seja na literatura ou no cinema, emergem símbolos, mitos, arquétipos que ordenam a cultura e dão sentido a grande aventura humana, é por estes caminhos que as personagens circulam e suas estradas se cruzam ou se afastam.

[UFF – 2001 – TRABALHO APRESENTADO POR SÔNIA MOURA]

Abela e a fera

6 comentários sobre “A BELA E A FERA – LITERATURA E CINEMA

  1. Sandra Monteiro disse:

    Poxa, Sônia! Acordei agora, no meio da noite, pensando nesse mito e no que a leitura que Walt Disney fez dele para o cinema representam. É exatamente isso. Parabenizo vc e reconheço a qualidade do seu trabalho de Semiologia, aliado à Análise do Discurso e à Psicologia. Dificil encontrar trabalhos nessas três áreas que não tenham alguma especulação. Vc fundamentou todas as suas colocações, e nós, como leitores ávidos que somos de boas leituras, ficamos felizes e agradecemos. Abraços.

  2. Sonia, adorei seu trabalho ainda mais a saber que leigamente cheguei a algumas conclusões similares as apontadas por Bettelheim, sobre as famílias disfuncionais, tão comuns no cinema americano. Cito entre elas as que mais conexão e similiaridade me vem a mente: ET e Gigante de Ferro, onde duas crianças (sem a presença materna) fazem amizde com um alienígena que lhes supre alguma dependência.
    Bom, eu tentando parecer inteligente sem necessidade 😛
    Um grande abraço, e um feliz 2010!

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